sexta-feira, 1 de setembro de 2017

"O filho de mil homens", Valter Hugo Mãe

Sobre "O filho de mil homens", antes de mais nada, eu recomendaria o vídeo abaixo, em que o próprio escritor fala sobre o livro:

https://www.youtube.com/watch?v=1aIYO5CtF5k

Eu me comovo quando escritores falam sobre seus livros e sobre suas personagens de forma tão afetuosa. E quando os vejo falando sobre o processo de criação de personagens, sempre me lembro do Bécquer, afirmando que "Por los tenebrosos rincones de mi cerebro, acurrucados y desnudos, duermen los extravagantes hijos de mi fantasía esperando en silencio que el Arte los vista de la palabra para poder presentarse decentes en la escena del mundo." E de um dos esconderijos do cérebro de Valter Hugo Mãe surgiu uma personagem muito especial: Crisóstomo. Como o escritor comenta no vídeo, Crisóstomo é a origem da história, portanto, nada mais justo que seja, também, o início do livro:

"Um homem chegou aos quarenta anos e assumiu a tristeza de não ter um filho. Chamava-se Crisóstomo." (p. 11, edição da Cosac Naify)

A frase inicial do livro é carregada de significado. É verdade que a história é também sobre família - mais especificamente sobre formar uma família ("Farto como estava de ser sozinho, aprendera que a família também se inventava." (p. 169)), mas o primeiro laço, o laço fundamental, que permite todos os outros, nesse caso, é o da paternidade. O encontro de Crisóstomo (com quarenta anos) e de Camilo (com catorze), ou seja, o encontro de pai e filho adotivos, é o elo principal da corrente que será formada... afinal, o que Crisóstomo mais queria dizer era "meu filho"; o que ele mais queria era um filho. Ao nascer, finalmente, a paternidade, todas as demais coisas parecem possíveis.

Valter Hugo Mãe é desses escritores que nos deixam felizes e tristes ao mesmo tempo. Tristes pelo que escrevem. Felizes por como escrevem (e por escreverem).

O primeiro capítulo é um conto. E os próximos continuam episódicos e relativamente independentes, até o momento em que as vidas começam a se cruzar. Todas as personagens principais se parecem: são solitárias, incompletas, incompreendidas, marginalizadas, "diferentes das pessoas" (p. 53). Enquanto a personagem Brod, de "Tudo se ilumina" (Jonathan Safran Foer), descobriu "613 tristezas, todas perfeitamente únicas, todas emoções singulares, tão diferentes umas das outras quanto da raiva, do êxtase, da culpa ou da frustração", as personagens de "O filho de mil homens" sofrem de uma tristeza em comum: a falta de amor, pois, sim, são todas personagens que precisam amar e ser amadas, ainda que cada uma de uma maneira particular. E, nesse caso, amor e felicidade apresentam-se como sinônimos. Contra o senso comum, presente no livro nas atitudes e, principalmente, nas acusações dos vizinhos, "Cada um padecia de uma especificidade que carecia de ser pensada de modo distinto." (p. 115), tanto é que, ao longo da narrativa, surgem várias definições, às vezes conflitantes, sobre o que é o amor - depende da personagem, depende da circunstância, depende da necessidade. E aos poucos, tal qual numa ciranda, essas personagens vão se ligando umas às outras; e, então, deixam de ser metades para serem dobradas (para serem em dobro).
Embora pensemos, de início, em Camilo como o filho de mil homens, todas essas personagens vão se tornando pais e mães e filhos e filhas e irmãos e irmãs, pois

"todos nascemos filhos de mil pais e de mais mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. Como se os nossos mil pais e mais as nossas mil mães coincidissem em parte, como se fôssemos por aí irmãos, irmãos uns dos outros. Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa, que nunca estaremos sós." (p. 188)

"O filho de mil homens" é, também, sobre aprendizagem.
O livro vai reunindo essas peças meio quebradas para formar uma família bastante improvável, na qual os afetos falam mais alto do que o sangue. E, embora possamos reconhecer um certo retrato do mundo e da sociedade modernos, a história tem seu quê de conto de fadas, como afirma o próprio escritor - inclusive no fato de ter sua boa dose de sofrimento e de crueldade. Não apenas Crisóstomo aparece como esse pescador-príncipe-encantado, mas a história vai se desenrolando de maneira que as pessoas certas encontrem umas às outras. Cada uma é munida das ferramentas necessárias para curar feridas carregadas pelas outras.

Afirmadas e reafirmadas na história são as dicotomias estar sozinho X não estar sozinho, ter amor X não ter amor, ser feliz X não ser feliz, sentir-se completo X não se sentir completo. Nesse lugar criado pela história, em que o principal objetivo é encontrar o amor, é encontrar quem lhe saiba amar, a solidão torna-se insuportável:

"Ela perguntou: o boneco tem nome. Ele respondeu: não. Ela disse: que sorte, assim não precisa de ser ninguém. Quem não é ninguém não lhe falta nada. Nem lhe falta o amor, nem espera por nada. O Crisóstomo riu-se e confessou que era uma espécie de filho feliz. O boneco era um filho feliz. Os felizes, disse a Isaura, gostava tanto de saber mais coisas sobre eles." (p. 79)

E tal qual uma fada madrinha, atendendo aos desejos de suas personagens, Valter Hugo Mãe reserva a elas uma espécie de final feliz:

"Entre o reboliço em que ficou a mobília, distribuíram-se os convidados um pouco à vontade mas com cerimónias simples e tantas atenções. Estavam uns mais altos e outros mais baixos, porque os bancos tinham pernas longas e as cadeiras tinham pernas bem mais curtas. Com o mais alto e o mais baixo de cada um, a mesa tão improvisada tinha o popular dos arraiais. Parecia um carrossel de gente em torno das cores alegres dos pratos e das comidas. Faltava que girasse. Tinha de ser uma festa, talvez fosse mesmo uma festa, porque sobre as dores de cada um se celebravam de algum modo as partilhas, a disponibilidade cada vez mais consciente da amizade. Estavam à mesa carregados de passado, mas alguém fora capaz de tornar o presente num momento intenso que nenhum dos convidados quereria perder. Naquele instante, nenhum dos convidados quereria ser outra pessoa. O Crisóstomo pensava nisso, em como acontece a qualquer um, num certo instante, não querer trocar de lugar com rei ou rainha nenhuns de reino nenhum do planeta." (p. 169)

É interessante pensar na questão de gênero nesse caso. Como o próprio Valter Hugo Mãe comenta no vídeo, a ideia inicial era a de escrever uma crônica sobre o desejo de ter um filho. De repente, dessa ideia surgiu um conto, com um personagem chamado Crisóstomo, que acabou se tornando o primeiro capítulo do livro. E, às vezes, durante a leitura, embora com a consciência de ler um romance, eu tinha essa impressão de estar lendo um ensaio. De maneira que me parece que o texto de Mãe é uma grande ideia que adentrou no universo literário (e no mundo) revestida pela escrita primorosa de seu escritor, mas que extrapola os limites de sua própria forma. E dessa ideia surge o grande aprendizado, talvez, da narrativa:

"Confiava por instinto que confiar era já a resposta. Era muito especial que pudesse enternecer-se consigo mesmo. Com o que fora tão recentemente, como se, pelo outro lado das coisas, também lamentasse deixar-se de mão e mudar. Mas não era uma tristeza, era exatamente uma saudade de ter sofrido o que sofrera, o necessário para lhe ensinar a usufruir mais tarde, agora, a felicidade. Achava ele que se devia nutrir um carinho por um sofrimento sobre o qual se soube construir a felicidade.
Deve nutrir-se carinho por um sofrimento sobre o qual se soube construir a felicidade, repetiu muito seguro. Apenas isso. Nunca cultivar a dor, mas lembrá-la com respeito, por ter sido indutora de uma melhoria, por melhorar quem se é. Se assim for, não é necessário voltar atrás. A aprendizagem estará feita e o caminho livre para que a dor não se repita. Estava a crescer. O pescador crescia para ser um homem tremendo." (p. 172)

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

"O coração das trevas", Joseph Conrad

Quando Conrad escreveu "O coração das trevas" ("Heart of Darkness"), as histórias de aventura eram muito estimadas pelo público leitor. Aproveitando de suas próprias experiências na Marinha, o escritor compôs essa história mais ou menos aos moldes dessa tipo de narrativa, mas apostando em um texto muito mais crítico, e, portanto, bem mais pesado. Talvez por isso seu livro não tenha feito tanto sucesso como outros do gênero, na época, mas permaneceu como um clássico da língua inglesa - embora o autor, nascido em Berdychiv, só tenha aprendido inglês quando jovem.
Em um texto composto por narrativa moldura e narrativa emoldurada, "O coração das trevas" conta a história de um grupo de marinheiros a bordo da escuna Nellie, que ouve a história de um deles, Marlow.
Marlow conta um episódio de sua vida, de quando, trabalhando para a Companhia, vai para o Congo, como capitão de navio, como parte integrante da missão civilizatória dessa região. O interessante do livro, ao tratar do tema do imperialismo, é o fato de ele apresentar dois pontos de vista: o do ideal da civilização e o da realidade, com a qual Marlow entra em contato ao chegar no Congo - uma das principais críticas ao livro é o fato de o povo civilizado e explorado não ter voz, sendo retratado apenas como um povo selvagem e sem cultura, exatamente o oposto do homem europeu.
O primeiro ponto de vista (do ideal da civilização), aparece no livro na voz do narrador da primeira história, quando diz:

"[...] A força da maré corre de um lado para outro, em sua faina incessante, coalhada de recordações de homens e navios que conduziu para o repouso do lar ou para os embates do mar. Conheceu e serviu a todos aqueles dos quais a nação se orgulha, de sir Francis Drake a John Franklin, todos fidalgos, com títulos ou sem títulos - os grandes cavaleiros andantes do mar. Conduziu todos aqueles navios cujos nomes brilham como joias na noite dos tempos, desde o Golden Hind, retornando com seu bojo redondo abarrotado de tesouros, para ser visitado por Sua Alteza a Rainha e assim sair gigante da história, até o Erebus e o Terror, empenhados em outras conquistas - e que jamais voltaram. Eles partiram de Deptford, de Greenwich, de Erith - os aventureiros e os colonos; navios de reis e navios de homens de negócios, capitães, almirantes, os terríveis violadores de monopólios no comércio do Oriente, os 'generais' comissionados das frotas das Índias Orientais. À caça do ouro ou em busca da fama, todos haviam partido daquele rio, levando a espada e muitas vezes a tocha, mensageiros do poder da terra, portadores de uma centelha do fogo sagrado. Que grandeza não havia partido na vazante daquele rio rumo aos mistérios de uma terra desconhecida!... Sonhos humanos, sementes de comunidades econômicas, germes de impérios." (p.  14-15, tradução de Marcos Santarrita, edição da Nova Fronteira)

Em um livro cuja dualidade luz X trevas já se insinua desde o título, podemos encontrá-la, pela primeira vez, na representação dos povos civilizatórios como a luz ("centelha do fogo sagrado", veiculando, inclusive, uma imagem de divindade; o próprio Marlow afirma em determinado momento: "[...] ficou bastante claro para mim que eu fora descrito à esposa do alto dignitário [...] como uma criatura excepcional e talentosa [...]. Algo assim como um emissário da Luz [...]." (p. 26)) e dos povos a serem civilizados como as trevas (quando Marlow parte para sua missão no Congo, e adentra cada vez mais pela selva, vai em direção ao coração das trevas). O desenrolar da história de Marlow vai, por sua vez, esclarecer essa ideia, ao lançar nova luz sobre a verdade por trás do conceito de civilização, e colocar abaixo essa primeira ideia veiculada.
O segundo ponto de vista surge exatamente na voz de Marlow - ou do Marlow que foi e viu a realidade:

"A conquista da terra, que em sua maior parte significa tomá-la daqueles que têm uma cor ligeiramente diferente ou narizes ligeiramente mais chatos que os nossos, não é uma coisa bonita quando a gente a olha bem de perto." (p. 18) 

Além de testemunhar a violência e a barbárie praticadas contra os negros, Marlow conta sobre a burocracia, a inutilidade, a falta de propósito e o absurdo de todo o processo:

"[...] Nós seguíamos pesadamente, parávamos, desembarcávamos soldados; prosseguíamos, desembarcávamos funcionários da alfândega para cobrar impostos no que parecia um deserto abandonado por Deus, com um barraco de lata e um pau de bandeira ali perdidos; desembarcávamos mais soldados - suponho que para tomar conta dos funcionários da alfândega. Eu soube que alguns se afogavam nas ondas; mas se se afogavam ou não, ninguém parecia ter qualquer interesse particular nisso. Eram simplesmente jogados ali, e nós seguíamos em frente." (p. 27-28)

"Deparei-me com uma caldeira coberta pelo mato, e depois descobri uma trilha que subia o morro. Contornava as rochas, e também um pequeno vagão ferroviário emborcado, com as rodas para cima. Uma delas caíra. A coisa parecia tão morta quanto a carcaça de um animal. Dei com outras peças de maquinário em decomposição, uma pilha de trilhos enferrujados. À esquerda, um grupo de árvores criava uma zona de sombra, onde umas coisas escuras pareciam mover-se debilmente. Pisquei os olhos, a trilha era íngreme. Um apito soou à direita e vi os negros correrem. Uma detonação pesada e abafada abalou o chão, uma bola de fumaça saiu do penhasco, e foi só. Nenhuma mudança se operou na face do rochedo. Estavam construindo uma estrada de ferro. O penhasco não estava no caminho de  nada; mas aquela explosão sem objetivo era todo o trabalho que se fazia. (p. 30-31)

"Uma vez, um branco de uniforme desbotado, acampado na trilha com uma escolta armada de magros zanzibares, muito hospitaleiro e festivo - para não dizer bêbedo -, declarou que cuidava da manutenção da estrada. Não posso dizer que vi alguma estrada ou alguma manutenção, a menos que o cadáver de um negro de meia-idade, com um buraco de bala na testa, no qual eu literalmente tropecei uns cinco quilômetros adiante, possa ser considerado uma melhoria permanente." (p. 38) 

O primeiro capítulo do livro (composto por três), então, focaliza essa questão de como a civilização é apresentada por aqueles com o propósito de civilizar e o que de fato acontece nos lugares a que esse povo chega, e, principalmente, o que acontece com os povos por ele civilizados.
Em determinado momento, além da dicotomia colonizadores X colonizados, começa a aparecer também, no texto, a tensão estabelecida entre o homem e a natureza. Na verdade, parece a Marlow que, frente à grandeza silenciosa da natureza, os homens transformam-se em "homenzinhos de insignificante existência"; diante dessa percepção, quão mais terrível se torna o fato de alguns homens se considerarem superiores e no direito de subjugar outros homens - ou outras culturas inteiras? Grande questão.
É ainda no primeiro capítulo que Marlow ouvirá sobre Kurtz pela primeira vez. Esse nome, constantemente citado (às vezes, aos sussurros), começa a despertar em Marlow uma grande curiosidade. Kurtz é o empregado mais bem sucedido da Companhia e o que vive no posto mais afastado e de difícil acesso. Na mente de Marlow, começa-se a formar a seguinte indagação: "Tinha bastante tempo para meditação, e de vez em quando pensava um pouco em Kurtz. Não estava muito interessado nele. Contudo, estava curioso para ver se aquele homem, que viera equipado com ideias morais de alguma espécie, chegaria ao topo afinal, e como se poria a trabalhar uma vez lá chegado." (p. 54) Kurtz, pouco a pouco, se transformará, aos olhos de Marlow, na resposta a ser alcançada. Tanto é assim que Marlow passa a pensar em Kurtz como uma voz:

"No momento, essa era a ideia dominante. Minha sensação era de extrema decepção, como se descobrisse que estivera lutando por uma coisa inteiramente sem substância. Não me sentiria mais desgostoso se houvesse viajado toda aquela distância com o único objetivo de conversar com o sr. Kurtz. Conversar com... Joguei um sapato por sobre a amurada, e tomei consciência do que era, exatamente, que procurava - uma conversa com o sr. Kurtz. Fiz a estranha constatação de que nunca o imaginara fazendo alguma coisa, vocês sabem, mas apenas falando. Eu não disse a mim mesmo: 'Agora, jamais vou vê-lo', ou 'Agora jamais apertarei a mão dele', mas 'Agora jamais vou ouvi-lo'. O homem apresentava-se como uma voz. Não, é claro, que eu não o relacionasse com algum tipo de ação. Não me haviam dito, em todos os tons de ciúme e admiração, que ele coletara, trocara, ganhara na trapaça ou roubara mais marfim que todos os outros agentes juntos? Não era isso que importava. O que importava era que se tratava de uma criatura talentosa, e que, de todos os seus talentos, aquele que se sobressaía com destaque, que trazia consigo um senso de presença real, era sua capacidade de falar, suas palavras - o dom da expressão, o espantoso, o iluminador, o mais exaltado e o mais desprezível, a pulsante corrente de luz, ou o enganoso fluir do coração de uma impenetrável escuridão." (p. 78-79)

Em determinado momento, então, Marlow é designado a buscar Kurtz em seu posto, pois, segundo informações, ele se encontra muito doente (teria enlouquecido). Durante a viagem que empreende, Marlow diz que "Subir aquele rio era como viajar de volta aos mais primordiais princípios do mundo, quando a vegetação invadia a terra e as grandes árvores reinavam." (p. 58) Começa, nesse ponto, a se delinear um novo tema no livro: adentrar o coração da selva, ou o coração das trevas, leva Marlow a um questionamento sobre a própria condição do ser humano, até chegar à conclusão de que "Coisa esquisita é a vida - esse misterioso arranjo de lógica cruel para um objetivo fútil. O máximo que se pode esperar dela é algum conhecimento de si mesmo - que chega tarde demais -, uma colheita de inextinguíveis arrependimentos." (p. 114)
A narrativa não é totalmente esclarecedora; não coloca os pingos nos is, digamos; mas esse se constitui justamente em um dos aspectos mais interessantes do livro, pois sugere não existir nem justificativa nem solução para a questão levantada no texto. O texto parece incompleto, sugerindo, também, que a experiência de Marlow não foi totalmente completa - ele não encontrou respostas definitivas... há algo que parece fugir da compreensão, por mais que se tente aproximar dele - e o alcance pleno dessa compreensão pode significar a loucura. O próprio texto nos alerta sobre isso em "Mas Marlow não era típico (a não ser em sua queda para contar histórias), e para ele o sentido de um episódio não estava dentro, como uma amêndoa, mas fora, envolvendo a narrativa, que o fazia surgir apenas como um fulgor faz surgir o nevoeiro, como uma dessas diáfanas auras que às vezes se fazem visíveis pela iluminação espectral do luar." (p. 16)
Adentrar o coração das trevas parece se configurar como ir ao encontro da verdade.

Embora não seja dada voz ao povo explorado, é verdade que a narrativa de Marlow nos faz ver mais humanidade nos explorados do que nos exploradores, que, por sua vez, conforme marca o relato de Marlow, já tiveram que, um dia, ser iluminados pelos romanos: "- E também este - disse Marlow de repente - foi um dos pontos de trevas da terra." (p. 15)

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

"Acabadora", Michela Murgia

"Acabadora" (no original: "Accabadora"), publicado em 2009, é de autoria de uma escritora italiana, nascida na Sardenha, chamada Michela Murgia. Por enquanto, esse é seu único romance publicado no Brasil, pelo selo Alfaguara, da Editora Objetiva, com tradução de Federico Carotti e Denise Bottmann. O romance, muito bem recebido na Itália, recebeu dois prêmios: o Campiello (prêmio já concedido, por exemplo, a Primo Levi e a Antonio Tabucchi) e o SuperMondello.
Romance contemporâneo, mas no qual, como consta na capa da edição brasileira, "'Murgia recupera a paisagem social e a tradição de sua Sardenha natal.'"
Na verdade, embora situado e ambientado em época e lugar específicos - a década de 1950 na Sardenha, com as tradições e os costumes de então -, o livro acaba por extrapolar os limites espaço-temporais ao focalizar as personagens menos pelos acontecimentos externos e mais por suas vivências emotivas em relação a esses acontecimentos.

A acabadora do título é Bonaria Urrai, uma costureira já velha, viúva e sem filhos, que, quando é noite em Soreni, desempenha sua segunda função: acabar com o sofrimento de pessoas já à beira da morte. Bonaria adota Maria Listru (filha última e indesejada de outra viúva, Anna Teresa Listru, que, além de Maria, tinha três outras filhas) como filha d'alma: "É assim que se chamam as crianças geradas duas vezes, pela pobreza de uma mulher e pela esterilidade de outra. Maria Listru era filha deste segundo parto, fruto tardio da alma de Bonaria Urrai." (p. 7) Os filhos d'alma não são exatamente separados dos pais biológicos, pois podem conviver com eles, mas passam a ter uma segunda família.

A história é bastante curta (a edição brasileira tem 154 páginas no total), e as personagens não são desenvolvidas muito profundamente (há sempre a sensação de que há muito mais escondido do que exposto), mas suas emoções são tão sinceras, tão verdadeiras, tão humanas, que elas, apesar de não nitidamente delineadas, mas pinceladas com algumas sombras pela escritora, estão intensamente vivas; e, para que seja assim, Murgia escreve os diálogos certos, e todos eles essenciais, de maneira que não há desperdícios: quando preciso, as personagens gritam; quando preciso, falam; quando preciso, calam. E o silêncio, que é recorrente no livro, representa as ausências, que são muitas ("Quem nasce órfão logo aprende a conviver com as ausências", p. 94).

"- A senhora é filha de quem, tia? - perguntou um dia, com a boca cheia de sopa.
- Meu pai se chamava Taniei Urrai, era aquele senhor ali...
Bonaria indicou a velha foto polida, pendurada em cima da lareira, onde Daniele Urrai, empertigado em seu colete de veludo, aparentava talvez uns trinta anos e podia parecer qualquer coisa à menina, menos o pai da velha diante de si. Bonaria leu a incredulidade no rosto rosado.
- Ali ele era moço, eu ainda não tinha nascido - explicou ela.
- E mãe, a senhora não tinha? - insistiu Maria, a qual, evidentemente, não possuía uma grande intimidade com a ideia de que os filhos pudessem ter pai.
- Claro que tinha, chamava-se Anna. Mas ela também morreu muitos anos atrás.
- Como meu pai - acrescentou Maria, séria. - Às vezes eles fazem isso.
Bonaria ficou surpresa com aquele comentário.
- Fazem o quê?
- Isso. Morrem antes que a gente nasça - Maria respondeu paciente. Depois acrescentou de má vontade: - Foi a Rita que me disse, a filha de Angela Muntoni. O pai dela também morreu antes.
Durante a explicação, a colher se agitava no ar como o arco de um instrumentista.
- Sim, alguns fazem isso. Mas nem todos - disse Bonaria, observando-a com um sorriso vago.
- É, nem todos - concordou Maria. - Pelo menos um tem que ficar. Para as crianças. É por isso que sempre é um casal de pais.
Bonaria concordou, colocando a colher na sopa, crente de que tinham terminado a conversa.
- Vocês eram em dois?
Por fim Bonaria entendeu e, sem parar de comer, falou no tom quase casual que tinha usado até aquele momento.
- Sim, éramos em dois. Meu marido morreu também.
- Oh, morreu... - repetiu Maria depois de um instante, indecisa entre o alívio e o desgosto.
- Sim - disse Bonaria, séria por sua vez. - Às vezes fazem isso." (p. 11-12)

O desfecho do livro, na verdade, não é exatamente inesperado. Mas Michela Murgia é muito feliz na composição de sua trama e presenteia o leitor com imagens tão lindas, que não é difícil o surgimento de uma relação afetiva no momento da leitura. Embora nem tudo das personagens esteja entregue ao leitor, essas personagens são conhecidas intimamente por quem narra a história, e essa história é narrada com muita candura, com muita delicadeza e de maneira cativante - o mesmo tipo de tratamento que o narrador de "As virgens suicidas" dispensa às meninas Lisbon, por saber que elas carecem desse carinho.

A cena que mais me marcou foi a cena em uma loja, em que Bonaria vê Maria, ainda com seis anos, roubando cerejas de um cesto e as escondendo no bolso do vestido branco:

"- Não a viu chorar naquela manhã na loja, enquanto a mãe se mortificava em encontrar palavras que explicassem aquele seu comportamento selvagem, aquela ânsia dos sentidos que se convertia em furto com uma frequência muito maior do que a fome pudesse justificar.
- Melhor seria se nunca tivesse nascido, sabem os céus que três já me bastam na minha condição...
E tampouco aquele aborto retroativo despertou alguma reação visível no rosto de Maria. Ela ficou imóvel com a inconsciência indolor de quem nunca nasceu de verdade, enquanto no tecido branco do vestido começava a florir a cor das cerejas roubadas, correspondendo ao bolso direito. Um vermelho que se espraiava como uma chaga, e em alguns pontos era quase negro. Aquela mancha parecia a única coisa a se mover nela, uma obscena menstruação de fruta. A dona da loja foi a primeira a notar.
- Você pegou cerejas do cesto?
Anna Teresa Listru se deu conta do furo na roupa da filha enquanto a bofetada já chegava ao seu destino. A menina fechou os olhos apenas durante o instante do golpe, depois reabriu e o olhar ficou parado, uma mão ferozmente enterrada no bolso exasperando a mancha externa. As lágrimas estavam ali, mas não desceram.
- Giulia, me desculpe, não sei o que dizer, ponha na minha conta...
- Imagine, acontece, são crianças - minimizou a comerciante atrás do balcão. - Mas certamente aquela mão malandrinha... - acrescentou malévola num meio sorriso.
Mais que tudo, foi principalmente aquele vermelho no bolsinho bordado que fez Bonaria Urrai pensar que talvez o tempo da esterilidade tivesse chegado ao fim, e não se passou uma semana para ir conversar com Anna Teresa Listru sobre a possibilidade de adotar Maria como filha d'alma." (p. 136-137)

Achei tão bonito que, embora Bonaria tenha adotado Maria e se tornado sua segunda mãe, a mancha das cerejas no tecido do vestido de Maria, simbolizando o sangue, sugira que foi Maria quem deu à luz essa maternidade. E isso será retomado posteriormente, nas decisões que Maria precisará tomar.

"- Maria, você é filha de quem?
A mocinha não esperava por essa. Calou-se por um momento tentando ver qual era a armadilha da pergunta, e optou pelo seguro.
- De Anna Teresa e Sisinnio Listru...
- Certo. Mas onde você vive?
Desta vez Maria percebeu a armadilha e tentou ganhar tempo.
- Vivo em Soreni.
- Maria - advertiu Bonaria arqueando as sobrancelhas. A menina teve de ceder.
- ... Vivo aqui com a senhora, tia.
- Portanto, você vive separada de sua mãe, mas continua a ser filha dela. Não é assim? Não vivem juntas, mas são mãe e filha.
Maria ficou quieta, um pouco humilhada, abaixando os olhos para os joelhos, querendo se consolar com o abecedário onde cada coisa tinha um lugar, e um lugar só. O sussurro saiu leve como um sopro.
- Somos mãe e filha, sim... mas não como uma família. Se fôssemos uma família, ela não teria feito um acordo com a senhora... isto é, eu acredito que a senhora é minha família. Porque nós duas somos mais próximas." (p. 25-26)

domingo, 26 de janeiro de 2014

"A elegância do ouriço", Muriel Barbery

"A elegância do ouriço" (2006) - no original "L'élégance du hérisson" - é o segundo (e, até o momento, último) romance de Muriel Barbery, professora de filosofia e escritora francesa, nascida no Marrocos.

Há, no romance, duas personagens a princípio completamente opostas, mas que acabam sendo um reflexo uma da outra. A primeira é Renée Michel, uma mulher de 54 anos que trabalha como zeladora em um edifício luxuoso no centro de Paris, o nº 7 da Rue de Grenelle; a segunda, Paloma Josse, uma menina brilhante de 12 anos, filha de um ministro, que mora com os pais e com a irmã em um dos apartamentos desse edifício. Separadas por uma grande diferença de idade e pela classe social, as duas têm em comum, principalmente - entre tantas coisas, como a admiração pela cultura japonesa -, a busca e a contemplação da beleza, que Renée chamaria de "camélias sobre o musgo", e Paloma, de "movimento do mundo". Não à toa, são as duas que escrevem o livro: Renée como a narradora principal; e Paloma, através de dois diários: os "Pensamentos profundos" (diário do espírito) e o "Diário do movimento do mundo" (diário do corpo), escritos depois de a menina decidir que se suicidará ao completar 13 anos. 

Aclamado como "o mais delicioso dos romances filosóficos", "A elegância do ouriço" é delicioso de ser lido, o que, evidentemente, não significa que a leitura seja tranquila ou tranquilizadora. O olhar extremamente aguçado e questionador de Renée sobre a vida, a partir da observação do cotidiano, me sensibilizou muito. As coisas não são normais só porque são comuns e aceitas. A própria Renée é o grande exemplo: Renée trabalha como concierge, mas não é uma concierge, é uma pessoa, que ama, por exemplo, a literatura russa, o cinema de Yasujiro Ozu, a música clássica, a pintura holandesa, que são, na verdade, seu prazer secreto, enquanto veste perfeitamente o comportamento da concierge rabugenta para conviver com as pessoas do edifício - a razão de Renée para manter essa espécie de identidade secreta saberemos nos capítulos finais. 

"Meu nome e Renée. Tenho cinquenta e quatro anos. Há vinte e sete sou a concierge, a zeladora do número 7 da Rue de Grenelle, um belo palacete com pátio e jardim interno, dividido em oito apartamentos de alto luxo, todos habitados, todos gigantescos. Sou viúva, baixinha, feia, gordinha, tenho calos nos pés e, em certas manhãs incômodas, um hálito de mamute. Não estudei, sempre fui pobre, discreta e insignificante. Vivo sozinha com meu gato, um bichano gordo e preguiçoso, cuja única particularidade digna de nota é ficar com as patas fedendo quando é contrariado. Ele e eu não fazemos o menor esforço para nos integrar no círculo de nossos semelhantes. Como raramente sou simpática, embora sempre bem-educada, não gostam de mim, mas me toleram porque correspondo tão bem ao que a crença social associou ao paradigma da concierge, que sou uma das múltiplas engrenagens que fazem girar a grande ilusão universal de que a vida tem um sentido que pode ser facilmente decifrado. E, assim como está escrito em algum lugar que as concierges são velhas, feias e rabugentas, assim também está gravado em letras de fogo, no frontão do mesmo firmamento imbecil, que as ditas concierges têm gatos gordos e hesitantes que cochilam o dia inteiro em cima de almofadas cobertas de capas de crochê.
[...]
O aparecimento dos videocassetes e, mais tarde, do deus DVD mudou as coisas ainda mais radicalmente no sentido da minha felicidade. Como é pouco corrente que uma concierge vibre com Morte em Veneza e que de seu cubículo escape um Mahler, comi a poupança conjugal, tão arduamente amealhada, e comprei outro televisor, que instalei no meu esconderijo. Enquanto a televisão da saleta - garantia de minha clandestinidade - berrava sem que eu ouvisse as insanidades dos cérebros e ostras, eu me maravilhava, com lágrimas nos olhos, diante dos milagres da Arte." (p. 15-18, edição da Companhia das Letras, tradução de Rosa Freire d'Aguiar)

Na verdade, a meu ver, a busca pela beleza não é apenas empreendida por Renée e por Paloma, mas pelo próprio romance, porque uma manifestação artística. A importância dessa busca é, na verdade, vital para as personagens, pois encontrar e presenciar um momento belo é vislumbrar a eternidade, porque esse momento se liberta do tempo e existe em si mesmo; como define Paloma ao final:

"Refletindo sobre isso, esta noite, com o coração e o estômago em migalhas, pensei que, afinal, talvez seja isso a vida: muito desespero, mas também alguns momentos de beleza em que o tempo não é mais o mesmo. É como se as notas de música fizessem uma espécie de parênteses no tempo, de suspensão, um alhures aqui mesmo, um sempre no nunca.
Sim, é isso, um sempre no nunca." (p. 350)

E esse vislumbre da eternidade pode valer por uma vida inteira. É como nos versos de Drummond: "Gastei uma hora pensando um verso/que a pena não quer escrever./No entanto ele está cá dentro/inquieto, vivo./Ele está cá dentro/e não quer sair./Mas a poesia desse momento/inunda minha vida inteira."
Além de ser possível, embora não comum, presenciar esses momentos no cotidiano - "A camélia sobre o musgo do templo, o violeta dos montes de Kyoto, uma xícara de porcelana azul, essa eclosão de beleza pura no centro das paixões efêmeras, não é a isso que nós todos aspiramos? [...] A contemplação da eternidade do próprio movimento da vida." (p. 106-107); e Renée e Paloma conseguem presenciá-la até na gramática -, a arte seria o lugar por excelência da verdadeira beleza (afirma Renée: "Pois a Arte é a vida, mas num outro ritmo." (p. 163)):

"A cobiça humana! Somos incapazes de parar de desejar, e mesmo isso nos magnifica e nos mata. O desejo! Ele nos transporta e crucifica, levando-nos cada dia ao campo de batalha onde na véspera perdemos mas que, ao sol, nos parece novamente um terreno de conquistas, nos faz construir, quando na verdade amanhã morreremos, impérios fadados a se tornar pó, como se o conhecimento que temos dessa queda próxima não importasse à sede de edificá-los agora, nos insufla o recurso de querer também aquilo que não podemos possuir, e nos joga de manhãzinha na relva juncada de cadáveres, fornecendo-nos até a nossa morte projetos tão logo realizados e tão logo renascidos. Mas é tão extenuante desejar permanentemente... Breve aspiramos a um prazer sem busca, sonhamos com um estado bem-aventurado que não começaria nem acabaria e em que a beleza não seria mais um fim nem um projeto mas se tornaria a própria evidência de nossa natureza. Ora, esse estado é a Arte. Pois essa mesa, eu tive de arrumá-la? [indagações de Renée ao admirar uma pintura de natureza-morta] Essas iguarias, devo cobiçá-las para vê-las? Em algum lugar, alhures, alguém quis essa refeição, aspirou a essa transparência mineral e perseguiu o gozo de acariciar com a língua o sedoso salgado de uma ostra ao limão. Foi preciso esse projeto, encaixado dentro de cem outros, fazendo jorrar outros mil, essa intenção de preparar e saborear um ágape de mariscos - esse projeto do outro, na verdade, para que o quadro tomasse forma.
Mas, quando olhamos para uma natureza-morta, quando nos deliciamos, sem tê-la perseguido, com essa beleza que leva consigo a figuração magnificada e imóvel das coisas, gozamos daquilo que não tivemos de cobiçar, contemplamos o que não tivemos de querer, afagamos o que não tivemos de desejar. Então, a natureza-morta, por figurar uma beleza que fala ao nosso desejo mas nasce do desejo de outro, por convir ao nosso prazer sem entrar em nenhum de nossos planos, por se dar a nós sem o esforço com que a desejaríamos, encarna a quintessência da Arte, essa certeza no intemporal. Na cena muda, sem vida nem movimento, encarna-se um tempo isento de projetos, uma perfeição arrancada de uma duração e de sua exausta avidez - um prazer se desejo, uma existência sem duração, uma beleza sem vontade." (p. 218-219)

De modo que a arte pode realizar um desejo do homem - a contemplação do belo -, ao mesmo tempo em que o liberta de desejar. É claro que, enveredando-se por questões/discussões filosóficas, o texto ficcional pode acabar sendo lido, também, através de uma veia mais teórica - o que não torna a leitura menos prazerosa.

É ótimo acompanhar Renée, que, vivendo em um ambiente hostil e firmado sobre a supervalorização das aparências, encontra suas camélias também no amor e na amizade, principalmente em Paloma, em Manuela (sua melhor amiga; uma mulher portuguesa que trabalha como faxineira em alguns apartamentos do edifício) e em Kakuro, o sr. Ozu, um senhor que se muda para o prédio e que é extremamente gentil. O título do livro se refere, evidentemente, à própria Renée, e é explicado por Paloma:

"A sra. Michel tem a elegância do ouriço: por fora, é crivada de espinhos, uma verdadeira fortaleza, mas tenho a intuição de que dentro é tão simplesmente requintada quanto os ouriços, que são uns bichinhos falsamente indolentes, ferozmente solitários e terrivelmente elegantes." (p. 152)

Ainda em um de seus diários - o "Pensamento profundo nº 10" -, Paloma escreverá sobre a aula de francês: "Francês com a sra. Maigre se resume a uma longa série de exercícios técnicos, que se faça gramática ou leitura de textos. Com ela, parece que um texto foi escrito para que se possam identificar seus personagens, o narrador, os locais, as peripécias, o tempo do relato etc. Acho que nunca lhe veio à mente que um texto é antes de tudo escrito para ser lido e provocar emoções no leitor. Imaginem que ela nunca fez a pergunta: 'Gostaram desse texto/desse livro?'. No entanto, é a única pergunta que poderia dar sentido ao estudo dos pontos de vista narrativos ou da construção do relato..." (p. 165). Então, Paloma, respondendo a sua pergunta: sim, gostei desse livro - que me provocou bastante tristeza, aliás.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

"Sartoris", William Faulkner

"Sartoris" (1929), de William Faulkner, publicado pouco antes de "O som e a fúria", já adiantava, temática e formalmente, o que viria a ser a considerada obra-prima do escritor. O romance focaliza uma família - os Sartoris - de passado escravocrata e que, já tendo gozado de glória e de respeito, vive, nos dias atuais, sua decadência - o que se repetiria em "O som e a fúria" com a família Compson. O Bayard Velho, filho do prestigiado coronel John Sartoris, e a tia Jenny, irmã mais nova do coronel (mas já com oitenta anos), vivem em uma casa cheia de ausências e de lembranças. Os outros dois Sartoris vivos são os netos gêmeos do Bayard Velho: o jovem Bayard e John. Gabriel García Márquez, leitor e admirador de Faulkner - a quem chama de mestre - teria citado três livros como grandes influências para a escrita de "Cem anos de solidão": a Bíblia, "As mil e uma noites" e "O tempo e o vento"; mas é evidente que, apreciando tanto o escritor norte-americano, sua obra tenha sido por ele influenciada; como veríamos depois em "Cem anos de solidão" - e de maneira muito mais intensificada -, os nomes, em "Sartoris", estão sempre se repetindo, gerando uma espécie de herança (aqui, não genética, mas de personalidade) aos novos membros da família, o que, é evidente, cria um movimento circular na narrativa, como se nascer um Sartoris já definisse o destino das personagens. Já no final do livro, Faulkner escreve: 

"[...] O jasmineiro emitia ondas de aroma; os pardais agora estavam mudos, e a srta. Jenny falava no crepúsculo sobre o pequeno Johnny enquanto Narcissa tocava absorta e desatenta, como se não estivesse ouvindo. Então, sem parar de tocar e sem volver a cabeça, ela disse:
"Não é John o nome dele. É Benbow Sartoris."
"O quê?"
"O nome dele é Benbow Sartoris", repetiu ela.
A srta. Jenny ficou imóvel por um instante. No aposento ao lado, Elnora movia-se de um lado para o outro, pondo a mesa para o jantar. "E você acha que isso vai fazer alguma diferença?, indagou a srta. Jenny. "Você acha que pode mudar algum deles com um nome?"
[...]
"Você acredita", repetiu a srta. Jenny, "que só por que recebeu o nome de Benbow ele não vai ser tanto um Sartoris e um estouvado e um tolo?" (p. 408, edição da Cosac Naify, tradução de Claudio Alves Marcondes)

O jovem Bayard e John vão para a Primeira Guerra Mundial, mas apenas o primeiro volta para casa, não apenas sem o irmão, mas com a imagem da morte dele constantemente se presentificando. Depois da experiência da guerra, e com a ausência do irmão, viver se torna insuportável para o jovem Bayard. Principalmente em um lugar - tanto sua casa, no condado de Yoknapatawpha, como na própria escrita de Faulkner - em que o tempo não passa, se arrasta lenta e sofregamente:

"Quando fechou a porta ao sair, Bayard tirou o paletó, os sapatos e a gravata, desligou a luz e estendeu-se na cama. O luar filtrava-se impalpável pelo quarto, refletido e difuso; nenhum som perturbava a noite. Além da janela erguia-se uma cornija em uma sucessão de degraus rasos, destacando-se de um céu opalino e sem dimensões. A cabeça dele estava desanuviada e calma; o uísque que havia bebido estava completamente neutralizado. Ou antes, era como se a cabeça dele fosse a de um Bayard que jazia em uma cama estranha e cujos nervos apaziguados pelo álcool se irradiavam como filamentos de gelo através daquele corpo que teria de arrastar para sempre em um mundo estéril e desolado. 'Maldição', exclamou, deitado de costas, olhando pela janela onde não havia nada para se ver, esperando pelo sono, sem saber se ele viria ou não, sem dar a mínima para qualquer uma dessas possibilidades. Nada para se ver, e a longa, longa trajetória de uma vida humana. Três vintênios e um decênio para arrastar um corpo obstinado pelo mundo e atender a suas insistentes demandas. Três vintenas e dez, dizia a Bíblia. Setenta anos. E ele tinha apenas vinte e seis. Pouco mais de um terço completado. Maldição." (p. 171-172)

E a narrativa de Faulkner faz o tempo se arrastar, com parágrafos inteiros com descrições das plantas no jardim da srta. Jenny, do perfume das plantas pela manhã, da luz do sol se infiltrando na sala do piano, do pó sobre os móveis... ler Faulkner é uma experiência separada do espaço e do tempo comuns. Para tentar fugir disso, o jovem Bayard passa o livro dirigindo carros em altíssima velocidade pelas estradas do condado, em busca de seu destino, assistido por todas as personagens, principalmente pela tia Jenny, que é quem vai sustentando a narrativa com sua memória que conjuga o passado e o presente dos Sartoris (em sua circularidade), e com seus comentários extremamente ácidos:

"A srta. Jenny agradeceu-lhe com mordacidade a solicitude e atreveu-se a dizer que Bayard estava bem: ainda um membro ativo da chamada raça humana, isto é, considerando-se que não haviam recebido nenhum relatório oficial do legista. Não, não recebera nenhuma outra notícia dele desde que Loosh Peabody ligou às quatro da tarde, dizendo que Bayard estava a caminho de casa com a cabeça quebrada. Quanto à cabeça quebrada ela não tinha a menor dúvida, mas à outra parte da mensagem ela não dera o menor crédito, tendo convivido com os malditos Sartoris por oitenta anos e sabendo muito bem que o último lugar no mundo em que um Sartoris com a cabeça quebrada pensaria em voltar seria para casa." (p. 163-164)

Se as personagens femininas em "O som e a fúria" são relapsas, ausentes, caladas e/ou excluídas, em "Sartoris" é uma personagem feminina, a srta. Jenny, a guardiã da história, dos Sartoris e de Faulkner - e com um senso de humor que garantiu que ela já se tornasse uma das minhas personagens preferidas de 2014. E ela reaparece em "Santuário" (1931), assim como Narcissa, esposa do jovem Bayard, e seu irmão Horace; mas, como "Santuário" se passa dez anos após o final de "Sartoris", a srta. Jenny já está com noventa anos, e sua acidez já se encontra mais abrandada, embora nem tanto. "Santuário", uma história com uma veia de mistério - que também se passa no condado de Yoknapatawpha -, se aproximaria mais do conto "A Rose for Emily", mas apresenta personagens tão perturbadas quanto qualquer personagem de "Sartoris" ou de "O som e a fúria". E "Santuário" nos mostra que em Yoknapatawpha tudo pode acontecer, assim como, por exemplo, em Macondo.

domingo, 3 de novembro de 2013

"O som e a fúria", William Faulkner

Já dizia Tolstói: "Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.". Para o livro de Faulkner, o adjetivo "infeliz" pode ser substituído, por exemplo, por "problemática", "destrutiva" ou "decadente". Como afirma Jason (um dos personagens do romance) em determinado momento: "A senhora ia pular pra fora da cova ah se não ia. Eu digo, não obrigado mulher é coisa que não me falta se eu me casasse eu ia acabar descobrindo que ela era viciada em droga, sei lá. É a única coisa que ainda não teve nesta família, eu digo." (p. 271)
A história de "O som e a fúria" (no original: "The Sound and the Fury"), publicado pela primeira vez em 1929, pelo escritor estadunidense William Faulkner, é centrada em uma tradicional família aristocrática do sul dos Estados Unidos, os Compson. A família Compson é formada por Jason Compson, sua mulher, Caroline Bascomb, e seus filhos: Quentin, Candace (Caddy), Jason e Benjamin (Benjy, nascido Maury); além desses personagens, mora na propriedade uma família de negros que trabalham para os Compson, cuja matriarca, Dilsey, é a testemunha direta da destruição da família. Também há tio Maury, irmão de Caroline, e Quentin, filha bastarda de Caddy. 
Mais especificamente, acompanhamos a narração do declínio e da dissolução dessa família em quatro partes, cada uma narrada por uma voz narrativa diferente, que o leitor vai identificando aos poucos:

Primeira parte: 7 de abril de 1928 
Narrador: Benjamin Compson
Segunda parte: 2 de junho de 1910
Narrador: Quentin Compson
Terceira parte: 6 de abril de 1928
Narrador: Jason Compson
Quarta parte: 8 de abril de 1928
Narrador: de 3ª pessoa que focaliza Dilsey

No entanto, os acontecimentos narrados não se resumem aos acontecimentos desses quatro dias específicos, porque os narradores fazem saltos significativos de tempo e mesclam, o tempo todo, o momento presente com diferentes e inúmeros momentos do passado, em uma técnica narrativa conhecida como fluxo de consciência, na qual se evidencia o processo de pensamento dos personagens, e que, portanto, se constrói sobre suas associações, suas analogias (por exemplo: um determinado fato presente pode lembrar ao personagem um fato da infância); como essas associações são muito particulares do personagem (que é quem tem as lembranças), nem sempre o texto fica claro para o leitor, o que contribui para que o leitor viva, ao ter que lidar com essa narrativa caótica, o caos vivido pelo próprio personagem. Muitos acontecimentos serão narrados mais de uma vez, sob diferentes pontos de vista, e é na junção das quatro partes que vai se montando um retrato mais completo sobre os Compson; desse modo, da mesma maneira que os personagens têm suas memórias, me parece que há uma memória do próprio livro, pois o leitor vai resgatando a todo momento trechos anteriores enquanto a narrativa segue. E cada uma das partes tem um tom particular, que condiz com a vivência do narrador em questão, e a última parte - narrada em terceira pessoa - apresenta uma narrativa mais simples, mais linear, menos fragmentada; depois de experimentarmos (na estrutura narrativa) a fúria compsoniana de ser, nos é oferecido um relato, um registro exterior dessa família, pelo único narrador que não vive naquele ambiente e naquela família conturbada. O personagem focalizado nessa última parte por esse narrador de terceira pessoa é Dilsey, a testemunha do declínio dos Compson:

"Dilsey não emitia nenhum som, seu rosto não tremia enquanto as lágrimas desciam em sulcos profundos e tortos, caminhava de cabeça erguida, sem querer esboçar nenhuma tentativa de enxugá-las:
'Para com isso, mãe!' disse Frony. 'Todo mundo olhando. Daqui a pouco a gente vai passar na frente dos branco.'
'Eu vi o primeiro e o derradeiro', disse Dilsey. 'Não preocupa comigo não.'
'Primeiro e derradeiro o quê?' perguntou Frony.
'Não preocupa não', disse Dilsey. 'Eu vi o princípio, e agora eu vejo o fim.'" (p. 327)

A história é cheia de dramas, de conflitos, de embates, de ódio; há situações chocantes - mais chocantes ainda quando se passam com pessoas de uma mesma família; os personagens são tanto autodestrutivos como destrutivos uns aos outros; e a consciência dessa estrutura familiar conturbada acompanha os personagens:

"Cheguei à rua, mas os dois haviam desaparecido. E lá estava eu, sem chapéu, como se eu também fosse maluco. E quem me visse podia muito bem pensar: um é maluco, o outro se matou afogado, a outra foi posta no olho da rua pelo marido, então todos eles devem ser malucos, mesmo. O tempo todo eu via as pessoas me olhando, como quem olha um gavião, aguardando uma oportunidade de dizer: Bom, não me surpreende, eu já esperava isso, a família toda é maluca. Vendem terra para que o outro possa estudar em Harvard, pagam imposto para sustentar uma universidade estadual que eu nunca vi, fora umas duas vezes em partidas de beisebol, e não deixam o nome da filha ser pronunciado na casa até que depois de um tempo o pai nem vinha mais ao centro, ficava o dia inteiro sentado ao lado da garrafa, eu só via as fraldas da camisola dele e as pernas nuas e ouvia o barulho da garrafa contra o copo até que no fim T.P. tinha que pôr a bebida no copo para ele e ela diz: Você não demonstra respeito pela memória do seu pai, e eu digo: Não vejo por que não ela está muito bem preservada e vai durar bastante [...]." (p. 256)

Eu confesso que tive dificuldade de entrar no texto, porque ele não é límpido, não é fluído, não é fácil, mas, indubitavelmente, ele é um esforço que compensa, e o prazer da leitura - em grande parte causado pela forma e pelo estilo utilizados por Faulkner - supera os obstáculos, que não são obstáculos negativos, mas intensificadores da grandiosidade do livro. Além de ser difícil encontrar um fio condutor narrativo, os acontecimentos não são explicitamente revelados, nem completamente explicados, nem mesmo concluídos, o que gera uma sensação de que o texto está inacabado, mas não em um sentido ruim, como sinônimo de incompleto, pelo contrário, o texto acaba por extrapolar sua própria arquitetura, tornando-se coisa viva. Ainda na questão de o livro deixar muito em aberto: Faulkner criou uma das personagens femininas mais intrigantes da literatura: Caddy. Caddy é personagem de suma importância na narrativa; ela é essencial para que os irmãos hajam da maneira que agem, para que eles sejam da maneira que são; ela é uma peça fundamental na história; no entanto, é a única filha que não narra - e, embora isso seja frustrante, contribui para a infinidade de possibilidades do texto, porque não havendo sua visão registrada, sua história particular se torna ainda mais instigante e ainda mais desejável. Da mesma maneira que Caddy é largada pelo marido e, posteriormente, excluída da própria família, também lhe é proibido contar sua própria versão dos fatos, e, assim, Caddy permanece para sempre afastada e calada.

"'É, você deve mesmo estar muito sensibilizada, vindo pra cá escondida assim que ele morreu. Mas você não vai ganhar nada com isso. Não fica pensando que você vai se aproveitar dessa situação pra voltar pra cá. Se você não consegue ficar no cavalo que você tem, o jeito é andar a pé', eu digo. 'Lá em casa a gente nem conhece o seu nome', eu digo. 'Sabia disso? A gente nem conhece o seu nome. Seria melhor pra você se você estivesse lá embaixo junto com ele e o Quentin', eu digo. 'Sabia disso?'" (p. 224)

Quando comecei a ler o livro, minha sensação imediata foi de que eu era uma intrusa em um ambiente familiar. E, sendo intrusa, eu não conseguia entender o que estava acontecendo, porque a cena já estava em andamento quando eu adentrei aquele ambiente. E eu me senti assim por muito tempo, chegando até a comentar a dificuldade pela qual eu estava passando com um amigo, que me respondeu: "O primeiro capítulo realmente é um desafio. É mais ou menos igual o amor, mas sem a possibilidade de se decepcionar.". Sábio amigo.

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E eu acho importante registrar, também, que, apesar de toda a tragédia e apesar de toda a desgraça, há inúmeras imagens belíssimas no texto. Faulkner captura momentos belos no exato momento em que eles alcançam o máximo de sua beleza e os eterniza no registro da escrita. Enfim, "O som e a fúria" é um livro genial, por qualquer prisma que se o aborde.

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No blog "Um túnel no fim da luz", Kelvin Falcão Klein escreveu três textos interessantes sobre os leitores de Faulkner.

1) Leitores de Faulkner

2) Leitores de Faulkner, 1

3) Leitores de Faulkner, 2

sábado, 12 de outubro de 2013

"The New York Trilogy", Paul Auster


The New York Trilogy, do escritor norte-americano Paul Auster, é composto por "City of Glass", "Ghosts" e "The Locked Room", e foi publicado em 1987, quando Auster, que já traduzia literatura, decidiu escrever seus próprios livros - para nossa alegria (na verdade, ele já havia publicado um livro anterior, Squeeze Play, usando o pseudônimo Paul Benjamin).

Assim como o diretor de cinema francês Christophe Honoré coloca, via de regra, seus personagens para caminharem bastante por Paris, Auster, na trilogia, faz seus personagens caminharem pelas ruas nova-iorquinas por boa parte das histórias, sem, na verdade, haver um lugar ou alguém que os acolha. É como canta alguém no último filme do Honoré, Les bien-aimés: "I want to go home but where can I go? Heaven knows. I want to go home a place that will be heavenly. I want to go home but where can I go? Heaven knows. Heaven knows, I'm miserable now." A Nova York de Auster não é uma Nova York sentimental, como, por exemplo, a de Woody Allen; a de Auster é fria, não acolhedora de seus habitantes, que vivem o paradoxo - característico das grandes metrópoles - da solidão em meio à multidão; embora gravada na memória dos personagens, não tem memória deles, de modo que as pessoas podem desaparecer e nunca mais serem encontradas, sem que fiquem marcas ou rastros, como se nunca tivessem existido ali, como se não tivessem passado de invenções ou de delírios; as mesmas linhas telefônicas, que podem se cruzar e aproximar duas pessoas que de outro modo não se encontrariam, são as mesmas que são canceladas, que estão sempre ocupadas e que impossibilitam que as pessoas consigam se comunicar.

"City of Glass" é a história de um escritor chamado Daniel Quinn, que, antes poeta, após a morte da mulher e do filho se dedica à escrita de uma série de romances policiais de sucesso, assinados com o pseudônimo William Wilson (nome de um personagem e de um conto de Edgar Allan Poe; e é evidente que a escolha do nome não é aleatória, pois o conto de Poe trata da figura do duplo, motivo que dá força a um dos temas principais do livro de Auster: a problemática da identidade). Um determinado dia, a altas horas da noite, Quinn começa a receber telefonemas estranhos, de uma pessoa que o confunde com um detetive chamado Paul Auster; ao invés de esclarecer o mal entendido, Quinn decide assumir a identidade da pessoa com a qual lhe confundem, e, desse modo, se vê investigando um homem, Peter Stillman, que, suspeitam o filho e a nora, pretende matar o próprio filho, também Peter Stillman (e o livro é cheio de personagens com mesmo nome, de gêmeos, de pessoas que se parecem imensamente, pequenos dados que vão se juntando e dando força à questão identitária vivida pelos personagens principais). Mas, ao invés de salvar o rapaz (na verdade, não se sabe se o pai realmente pretendia matar o filho, só se tem a palavra da nora e o depoimento do filho), Quinn acabará se perdendo: perderá sua casa, sua vida, sua identidade. E o principal é que o personagem aceita tudo isso com muita naturalidade. E o leitor se sente inconformado/incomodado com tanta conformidade, porque Quinn aceita as situações mais estranhas, mais absurdas: sem questionar. Tal qual Dom Quixote (figura bastante presente na história) e sua obsessão pelas histórias de cavalaria, Quinn se tornará tão obcecado pela investigação, por observar o outro, que acabará se tornando a verdadeira vítima em seu voyeurismo levado às últimas consequências, e acabará enfrentando seus próprios moinhos. Os demais personagens envolvidos já desapareceram, já não há mais nada a ser investigado, mas o protagonista continua irremovível de seu lugar de observação. Essa obsessão pelo outro evidenciará a questão da falta/busca de identidade vivida não apenas por Quinn, mas pelos protagonistas das outras duas histórias também; a obsessão é tamanha que, não apenas observar, esses protagonistas desejam assumir a identidade daqueles que observam, como se, na assunção dessas outras identidades, pudessem se livrar de seus próprios fantasmas. 

"As he wandered through the station, he reminded himself of who he was supposed to be. The effect of being Paul Auster, he had begun to learn, was not altogether unpleasant. Although he still had the same body, the same mind, the same thoughts, he felt as though he had somehow been taken out of himself, as if he no longer had to walk around with the burden of his own consciousness. By a simple trick of the intelligence, a deft little twist of naming, he felt incomparably lighter and freer. At the same time, he knew it was all an illusion. But there was a certain comfort in that. He had not really lost himself; he was merely pretending, an he could return to being Quinn whenever he wished. The fact that there was now a purpose to his being Paul Auster - a purpose that was becoming more and more important to him - served as a kind of moral justification for the charade and absolved him of having to defend his lie. For imagining himself as Auster had become synonynous in his mind with doing good in the world." (p. 50-51 - "City of Glass")

Em "Ghosts", um jovem detetive chamado Blue é contratado por um homem chamado White, para vigiar um homem chamado Black. O motivo? Não se sabe. White aluga, para Blue, um apartamento em frente ao apartamento de Black, e a função do detetive é observar Black e detalhar todos seus movimentos em relatórios semanais a serem enviados a White. Enclausurado no apartamento, Blue se torna Daniel Quinn: um homem solitário, sem nada que o ligue ao mundo "lá fora" - já que perdeu até a "future Mrs. Blue" -, e que vive exclusivamente para sua observação. Em determinado momento, descobrir-se-á que as pessoas não são exatamente quem parecer ser, e essa problemática de identidade acaba se tornando o principal fantasma de Blue, assim como o é de Quinn em "City of Glass". O interessante é o paralelismo que se estabelece entre o ambiente da grande metrópole - no caso, Nova York - e a mente dos personagens, pois ambos (exterior e interior) se apresentam de forma labiríntica, de modo que, mesmo quando o personagem está trancado em um quarto, esquecido da e pela vida que borbulha nas ruas nova-iorquinas, ele está, além de fechado em um quarto, preso e adentrando cada vez mais profundamente seus próprios labirintos.

A essa altura, é possível identificar muitas similaridades entre as duas primeiras histórias, que, embora com casos distintos e com desfechos bastante diversos, acabam sendo duas possibilidades para uma mesma ideia inicial, duas variações do mesmo tema. De repente, não é difícil imaginar Quinn e Blue como o mesmo personagem, principalmente se considerarmos que ambos se dedicam à assunção de diversas identidades, como se, assumindo-se como o outro, pudessem se livrar de si mesmos, como se outra existência - qualquer que seja - fosse, via de regra, melhor do que as suas; desse modo, seria totalmente possível que Quinn (sobre cujo destino o final de "City of Glass" não nos esclarece) tenha se tornado Blue, que, por sua vez, se experimenta em diversos outros. A obsessão pela observação acontece porque, afinal, é a única coisa a qual o personagem pode se apegar, e quando essa "relação" se rompe ou é desestabilizada, desestabiliza-se também o personagem. A única maneira de tentar ordenar o caos do mundo e da vida seria através da escrita, a qual os personagens se dedicam. No entanto, quem quer que se dedique à escrita sabe que esse pode se tornar, principalmente para quem já não está em seu melhor momento, justamente o empurrão necessário para a loucura. 

"Still, it looms as a perverse temptation, and Blu must struggle with himself for some time before fighting it off. He goes back to the beginning and works his way through the case, step by step. Determined to do exactly what has been asked of him, he painstakingly composes the report in the old style, tackling each detail with such care and aggravating precision that many hours go by before he manages to finish. As he reads over the results, he is forced to admit that everything seems accurate. But then why does he feel so dissatisfied, so troubled by what he has written? He says to himself: what happened is not really what happened. For the first time in his experience of writing reports, he discovers that words do not necessarily work, that it is possible for them to obscure the things they are trying to say. Blue looks around the room and fixes his attention on various objects, one after the other. He sees the lamp and says to himself, lamp. He sees the bed and says to himself, bed. He sees the notebook and says to himself, notebook. It will do not do to call the lamp a bed, he thinks, or the bed a lamp. No, these words fit snugly around the things hey stand for, and the moment Blue speaks them, he feels a deep satisfaction, as though he has just proved the existence of the word." (p. 145 - "Ghosts") 

De modo que o personagem precisa nomear as coisas do mundo, porque é assim que elas passam a existir e é assim que se ordena o caos, mas e quando não se consegue nomeá-las? Esse foi o primeiro livro do Auster que li, mas, lendo sobre o autor, percebi que esse tema é recorrente em sua obra, e uma de suas principais influências é a teoria psicanalítica de Lacan, segundo a qual nós observamos o mundo por meio de nossos sentidos, mas o mundo que nós sentimos é estruturado nas nossas mentes através da linguagem, assim como é estruturado o nosso subconsciente. E se só se pode perceber o mundo através da linguagem, é inevitável que seja gerado um sentimento de que algo está sendo perdido, algo que está fora ou além da linguagem, porque sempre haverá algo que não pode ser dito ou mesmo pensado, mas apenas sentido.

"Yes. A language that will at last say what we have to say. For our words no longer correspond to the world. When things were whole, we felt confident that our words could express them. But little by little these things have broken apart, shattered, collapsed into chaos. And yet our words have remained the same. They have not adapted themselves to the new reality. Hence, every time we try to speak of what we see, we speak falsely, distorting the very thing we are trying to represent. It's made a mess of everything. But words, as you yourself understand, are capable to change. The problem is how to demonstrate this. That is why I now work with the simplest means possible - so simple that even a child can grasp what I am saying. Consider a word that refers to a thing - 'umbrella', for example. When I say the word 'umbrella', you see the object in your mind. You see a kind of stick, with collapsible metal spokes on top that form an armature for a waterproof material which, when opened, will protect you from the rain. This last detail is important. Not only is an umbrella a thing, it is a thing tha performs a function - in other words, expresses the will of man. When you stop to think of it, every object is similar to the umbrella, in that it serves a function. A pencil is for writing, a shoe is for wearing, a car is for driving. Now, my question is this. What happens when a thing no longer performs its function? Is it still the thing, or has it become something eles? When you rip the cloth off the umbrella, is the umbrella still an umbrella? You open the spokes, put them over your head, walk out into the rain, and you get drenched. Is it possible to go on calling this object an umbrella? In general, people do. At the very limit, they will say the umbrella is broken. To me this is a serious error, the source of all our troubles. Because it can no longe perform its function, the umbrella has ceased to be an umbrella. It might resemble an umbrella, it might once have been an umbrella, but now it has changed into something else. The word, however, has remained the same. Therefore, it can no longer express the thing. It is imprecise; it is false; it hides the thing it is supposed to revel. And if we cannot even name a common, everyday object that we hold in our hands, how can we expect to speak of the things that truly concern us? Unless we can begin to embody the notion of change in the words we use, we will continue to be lost." (p. 76-77 - "City of Glass")

A última história - minha preferida - é sobre um homem (o protagonista) procurado por Sophie, a mulher de seu ex melhor amigo, Fanshawe, que sumiu há vários meses e que, acredita-se, esteja morto. Antes de desaparecer, Fanshawe pediu a Sophie que, se algo lhe acontecesse, ela procurasse o protagonista e lhe entregasse todos seus escritos (e são muitos) a fim de que o amigo, crítico literário, decidisse se valia a pena publicar a obra ou não. Essa é a única história escrita em primeira pessoa, as outras duas são escritas em terceira. E, embora essa seja a mais diferente das três, superabundam as semelhanças, inclusive com cenas que se repetem quase que identicamente, como se você pudesse presenciar o que aconteceu em um espaço de tempo que, em outra história, havia sido apenas mencionado; e é essa última história, portanto, que funcionará como o elo de ligação do livro. No processo de ler, conhecer e publicar a obra (sensacional) de Fanshawe, o protagonista se tornará obcecado pelo amigo, que sempre foi uma figura de extrema admiração tanto para ele como para todas as outras pessoas. Eis o dilema vivido pelos outros dois protagonistas se presentificando novamente.

Trata-se, portanto, de histórias de investigação, mas não propriamente do tipo de história detetivesca com a qual estamos habituados. A situação inicial de história policial vai situar os personagens em um patamar no qual, na verdade, a investigação original acaba por se tornar uma possibilidade para a vivência de uma outra espécie de investigação.
A dinâmica dos personagens me fez pensar no "Copie conforme", do Kiarostami, no qual acompanhamos dois personagens (interpretados por Julliete Binoche e por William Shimell) que se revezam em ser ora dois completos desconhecidos ora um antigo casal. Os personagens da trilogia de Auster estão o tempo todo se alternando, se camuflando, se transformando, o que me gerou a sensação de que tudo o mais no livro está congelado enquanto os personagens estão em constante rotação. É na última história que isso se torna mais pungente, porque os personagens são/não são/podem ser/não podem ser os mesmos que já apareceram nas outras duas histórias anteriores. Ninguém é exatamente uma única pessoa; mas também estive pensando: se uma pessoa se experimenta em tantas identidades diferentes, ela não deixará de ter uma unidade, de ter algo que a constitua como ela mesma? Assim, é como se os personagens estivessem circulando livremente de uma história para a outra, e, nessa circulação, as histórias estivessem sendo reescritas. E é por isso que me parece que cada um dos títulos podem servir não apenas a sua, mas as três histórias:

"City of Glass": porque os personagens estão se refletindo uns nos outros.

"Ghosts": porque os personagens, ao se obcecarem por outros personagens, acabam se tornando vítimas da figura ou da imagem dessas pessoas que não estão de fato presentes em suas vidas.

"The Locked Room": porque os personagens são solitários, se afastam do mundo, da cidade, das pessoas, da família e se isolam em um quarto trancado, literalmente ou não.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

"A visita cruel do tempo", Jennifer Egan




"É essa a realidade, não é? Vinte anos depois, a sua beleza já foi para o lixo, especialmente quando arrancaram fora metade das suas entranhas. O tempo é cruel, não é? Não é assim que se diz?" (p. 126)


A visita cruel do tempo (2011), de Jennifer Egan, merece ser lido. Eu vinha adiando essa leitura desde o ano passado, quando o livro foi publicado no Brasil e a escritora participou da Tenda dos Escritores na FLIP junto com o Ian McEwan (um dos meus autores preferidos). Não li mais nada da Egan, mas acho que não seria exagero dizer que A visita cruel do tempo seria suficiente para, sozinho, destacá-la como um nome importante da literatura contemporânea.

Primeiramente, a estrutura do livro é bastante interessante: podemos chamá-lo de romance, mas os capítulos se sucedem como contos, de maneira que seria possível a leitura separada de cada um deles, que assumiriam, mesmo isolados, um sentido completo. Mas há uma unidade, claro, e uma história vai se ligando à outra através das personagens, que, devido a essa configuração parcialmente independente das partes, vão se revezando ora como personagens principais (em seus capítulos específicos), ora como personagens secundárias, ora ficando completamente ausentes - o que, para mim, gerou um efeito bem interessante, porque, de fato, cada pessoa é protagonista da sua própria história, mas bilhões de outras histórias estão acontecendo simultaneamente. As duas personagens que abrem e encerram o livro, ou seja, aquelas que poderíamos chamar de protagonistas, são Sasha e Bennie - eu diria mesmo que Sasha é a personagem principal do livro, já que, mesmo no final, quando ela não está presente, sua ausência é uma presença importante, que move as outras personagens. Sasha é a personagem que permite o caráter cíclico do livro. Logo no primeiro capítulo, há uma cena em que Sasha está em seu apartamento com um rapaz chamado Alex, que acabou de conhecer e que acabou de chegar a Nova York; Alex está deslumbrado, tudo lhe é novo e interessante, inclusive a banheira na cozinha de Sasha - que, pensava ele, era uma coisa que não existia mais. Naquela noite, Sasha fica pensando sobre o futuro, se perguntando se daí a alguns anos Alex realmente ainda se lembrará dela ou se apenas terá uma vaga lembrança de uma moça que conheceu logo quando chegou à cidade e que tinha uma banheira na cozinha. E, no capítulo final, em que Sasha não aparece, é exatamente assim que Alex se lembra dela: como uma moça que conheceu logo quando chegou à cidade e que tinha uma banheira na cozinha. Na ocasião, Alex está trabalhando para Bennie, ex patrão de Sasha, e, ao se lembrar melhor da moça e perguntar a Bennie sobre ela, os dois resolvem ir até seu antigo apartamento, numa tentativa, ainda que não muito esperançosa (pois Bennie sabe que ela havia se casado, e, provavelmente, mudado de endereço), de encontrá-la. Não a encontram. E, logo quando estão indo embora, Alex escuta um barulho e, ao se virar, vê uma moça tentando abrir um porta com uma chave: Sasha foi embora dali, mas outras pessoas continuarão vivendo e/ou começando sua história naquele mesmo ponto - o que lembra o final de 360, último filme do Fernando Meirelles.

"Um barulho de saltos estalando na calçada pontuou o silêncio. Alex abriu os olhos de repente, e tanto ele quanto Bennie se viraram - na verdade, deram um giro com o corpo todo, esforçando-se para distinguir Sasha em meio à escuridão cinzenta. Mas era só outra garota, jovem e recém-chegada à cidade, tentando pôr a chave na fechadura." (p. 333)

Sim, a passagem do tempo, como já alegado no próprio título, é uma constante no livro. A sucessão da história não acontece em ordem cronológica linear, de modo que, além de focalizarem personagens diferentes, há saltos temporais significativos de um capítulo para outro; o que coloca lado a lado a mesma personagem em diferentes momentos de sua vida, ora evidenciando, por exemplo, a discrepância entre seus planos e seus fracassos, ora mostrando como as personagens mudaram ou tiveram que mudar. (E eu sei que algumas pessoas fizeram uma leitura muito mais otimista que a minha.) Além dessa sucessão não cronológica dos acontecimentos, a narrativa dos próprios capítulos gera uma suspensão do tempo presente para adiantar acontecimentos de muitos anos para o futuro; por exemplo, às vezes, o narrador está falando sobre o presente de uma personagem dançando na praia e, então, faz o salto, contando que daí a vinte anos essa personagem se suicidará e que a imagem que ficará dessa personagem para sua irmã é (voltando para o presente das personagens) exatamente eles dois ali dançando juntos na praia. Na minha leitura, ao adiantar os dados da morte da personagem, o espaço  temporal percorrido entre o momento presente e sua morte é anulado, gerando uma espécie de indiferença pelo percurso da personagem: não importa o que ela fez nesse meio tempo (e algumas das coisas que aconteceram nesse ínterim serão narradas em outros momentos - ou do mesmo capítulo ou de capítulos seguintes), pois, passados os vinte anos, ela se suicidará. Ou seja, a visita do tempo é muito cruel.

A segunda parte do livro, inclusive, é a "De A a B", nome do novo CD de uma ex estrela do rock, que, agora, já velho e doente, pretende fazer uma turnê suicida. Mas, seguindo uma dica do próprio Bennie, eu fiquei pensando em "De A a B" como o percurso das personagens mesmo: como elas chegaram de A a B. Na vida, digamos, poderíamos marcar os pontos da seguinte maneira:

A = nascimento 
B = morte

Na literatura, poderíamos estabelecer duas marcações:

I:
A = primeira aparição da personagem no livro
B = última aparição da personagem no livro

II:
A = momento mais antigo da vida da personagem contado no livro
B = último momento da vida da personagem contado no livro

Como a trama do livro da Egan não é simples, a última aparição da personagem no livro nem sempre coincidirá com o último momento da vida da personagem contado no livro; como é o caso do exemplo anterior, em que o narrador adianta a narração da morte da personagem, quando a personagem ainda é uma criança, e a sua última aparição no livro é em uma dança com a irmã na areia da praia, o que não impede que essa personagem apareça em momentos posteriores da narrativa através das lembranças de outra personagem.

Na verdade, o que eu queria mesmo dizer é que a Egan tem um poder invejável de condução de narrativa. A maneira como ela conduz as histórias particulares das personagens e a história maior do livro é sensacional. E ela experimenta muito, também. Acredito que já é conhecido de todo mundo que no livro, por exemplo, há um capítulo narrado em segunda pessoa e um capítulo em forma de apresentação de power point - ressaltando, claro, que essas experimentações não são gratuitas, tudo faz sentido dentro do texto. E, embora o tempo seja o norte do livro, a Egan trata de muitos outros assuntos, como, por exemplo, da tecnologia. E a música (predominantemente o rock) acompanha de perto as personagens, sendo fundamental no desenrolar de suas histórias. Como diz um dos comentários da capa do livro: "A música funciona tanto como sujeito quanto como metáfora à medida que Egan explora a mutabilidade do tempo, o destino e a responsabilidade individual na pós-tecnologia".

Enfim, como constou no San Francisco Chronicle: "Como um disco perfeito, esse livro pede uma repetição imediata". 

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Há uma personagem que fica o tempo todo criando conceitos, como: Ressentimento Estrutural, Afeto Estrutural, Incompatibilidade Estrutural, Desejo Estrutural, Fixação Estrutural... dos quais o mais interessante é: "Insatisfação Estrutural: retornar a circunstâncias outrora agradáveis depois de ter experimentado uma forma de vida mais emocionante ou mais opulenta, e descobrir que não consegue mais suportá-las" (p. 84). Pergunta: vocês também não sofrem de insatisfação estrutural ao terminar de ler um livro?

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Com o McEwan, na FLIP 2012.

sábado, 1 de junho de 2013

"A outra volta do parafuso", Henry James


Se, como eu, você gosta de sintonizar, quando possível, suas leituras com a situação climática, "A outra volta do parafuso" (ou simplesmente "A volta do parafuso" - no original "The turn of the screw"), de Henry James - história publicada pela primeira vez em 1898 -, é um livro excelente para ser lido em um dia frio, chuvoso e cinzento.

"Naquela noite, cheguei até a começar. O tempo havia fechado, ventava muito lá fora, e à luz do lampião, em meu quarto, com Flora tranquila a meu lado, fiquei um bom tempo sentada diante de uma folha de papel em branco escutando o látego da chuva e as lufadas de vento." (p. 113 - da edição da Penguin Companhia)

Há, no livro, duas histórias, estando a segunda contida na primeira: temos, portanto, uma narrativa moldura (introdutória) e uma narrativa emoldurada (principal). Na primeira narrativa (moldura), narrada em primeira pessoa por uma das personagens presentes na cena, há um cenário clássico de contação de histórias (situação que favorece o emolduramento de narrativas): um grupo de pessoas está reunido, em uma velha casa inglesa, na noite de Natal, ao redor de uma lareira, contando histórias de horror. Entre uma história e outra, um dos presentes, Douglas, afirma conhecer uma história (real) "Do que há de mais insólito, revoltante, horrendo, doloroso." (p. 08); o que, claro, deixa o grupo ansioso por ouvi-la imediatamente; mas Douglas é um exímio contador de histórias (entre tantos herdeiros literários de Sherazade), e consegue, além de suscitar, manter a tensão e a expectativa do grupo enquanto manda buscar, em sua casa em Londres, o manuscrito da história, lhe conferindo (a princípio - que se frise!) um estatuto de verdade, uma vez que foi registrada por escrito pela pessoa que viu e viveu os acontecimentos. 
A segunda história (emoldurada) - que Douglas lê para o grupo - é a história de horror propriamente dita; ela é narrada/escrita em primeira pessoa por uma jovem governanta que relata os acontecimentos de um período de tempo em que trabalhou em uma mansão de campo inglesa chamada Bly. Tal qual a Jane Eyre, do romance da Charlotte Brontë (de 1847), essa jovem governanta aceita um emprego - de um cavalheiro bastante peculiar - em um casarão isolado do mundo e da sociedade (por si só propício a ambientar histórias de terror) para cuidar de uma garotinha - e, posteriormente, também de seu irmão, que, a princípio, está no colégio e voltará para casa nas férias. A exemplo de Douglas, a narradora/escritora da segunda narrativa é uma excelente contadora de histórias, com uma forte tendência a hipérboles. Acontece que a governanta começa a ver pessoas estranhas pela casa e por seus arredores, e acaba por descobrir que vê os fantasmas de duas pessoas que já trabalharam em Bly (uma delas, inclusive, é sua antecessora: a antiga governanta).
E é, então, que a história começa a ficar interessante (mas não exatamente de um modo bom). Eu gosto de narração em primeira pessoa, gosto de romance epistolar, de narrativas em forma de diário... mas é sabido que o narrador de primeira pessoa é o menos confiável e o mais parcial, justamente porque, por deter o poder da narração, não permite ao leitor enxergar os acontecimentos por outros pontos de vista, que possibilitariam um maior conhecimento dos fatos narrados. E, então, a questão dessa segunda narrativa é: os acontecimentos narrados realmente aconteceram? Sim? Não? Se sim: eles realmente aconteceram da maneira narrada pela governanta? Aquela foi apenas a visão (limitada e/ou distorcida) da governanta? Foi tudo produto de sua imaginação? Afinal, alguém mais realmente viu o que ela viu; ou apenas ela viu, acreditando (querendo acreditar) que os outros também viam? E a história vai ficar bastante horripilante; e o final é chocante! 

Para exemplificar a tensão estabelecida entre a realidade e a imaginação por parte da governanta:

"Juntar-me a eles não era um problema, mas falar-lhes continuou a ser, como sempre, um empreendimento acima de minhas forças - envolvia, na proximidade, obstáculos tão intransponíveis quanto antes. Essa situação prolongou-se por um mês, e com novos agravantes e toques específicos; acima de tudo, cada vez mais intenso, o toque de uma leve consciência irônica da parte de meus pupilos. Não se tratava apenas, disso estou tão certa agora quanto estava na época, de minha infernal imaginação: era perfeitamente visível que eles estavam cientes do meu dilema e que essa estranha relação, de certo modo, constituía, por um bom tempo, a atmosfera em que vivíamos. Não quero dizer que eles fizessem caretas ou qualquer outra vulgaridade, pois esse não era um de seus perigos: quero dizer, sim, que o indizível e o intocável se tornaram, entre nós, os elementos mais presentes, entendimentos tácitos. Era como se, em certos momentos, nossos olhares encontrassem constantemente coisas que não podiam ser vistas, como se saíssemos de repente de becos que se revelavam sem saída, fechando com um pequeno estrépido que nos fazia entreolhar-nos - pois, como todos os estrépidos, era mais ruidoso do que fora nossa intenção - as portas que, por indiscrição, tínhamos aberto. Todos os caminhos levam a Roma, e havia ocasiões em que tínhamos a impressão de que quase todos os campos do saber e assuntos de conversação bordejavam territórios proibidos. Era território proibido a questão da volta dos mortos em geral e, em especial, do que quer que restasse, na memória, dos amigos que as crianças tinham perdido. Havia dias que eu eu seria capaz de jurar que um deles, com uma pequena cutucada invisível, dissera ao outro: 'Ela acha que vai conseguir desta vez - mas não vai!'. 'Conseguir', no caso, seria fazer uma referência direta, por exemplo - pela primeira vez, de certo modo -, à moça que os preparara para a minha disciplina." (p. 93-94)

Como fica claro, não temos acesso ao que de fato as outras personagens pensam, porque a visão que temos delas é filtrada pela visão da narradora. Mas fica evidente como nada é exatamente afirmado, mas sugerido, inferido, suspeitado...
Mas, ao final, duas leituras são possíveis, porque não há nada material no texto que descarte uma delas afirmando a outra como verdade absoluta e inquestionável - nós, brasileiros, aliás, conhecemos muito bem esse tipo de dúvida literária. Portanto, há essa tensão causada pela narrativa, que, embora pareça esfregar na nossa cara a verdade, deixa muita ambiguidade, muitas coisas dúbias, muitas sugestões, de maneira que não é possível ter certeza absoluta do que de fato aconteceu, o que torna o final ainda mais chocante.

Na edição da Penguin Companhia (como em vários volumes dessa coleção), há um posfácio bastante interessante de um professor chamado David Bromwich, que traz, inclusive, bastante referência bibliográfica de estudos sobre "A outra volta do parafuso" e sobre o Henry James. Para finalizar, acho interessante citar o seguinte trecho:
"Todas essas narrativas [...] causam um certo desconforto que perdura após a leitura. As forças sobrenaturais conservam seu poder sobre a imaginação mesmo depois que uma explicação natural de suas origens se revela suficiente. Mas isso é característico da psicologia das narrativas fantásticas em que o mistério sobrevive à sua explicação: o conto de E.T.A. Hoffmann, "O homem de areia" (1816), e o filme "Vertigem" (1958), de Alfred Hitchcock são exemplos óbvios. Numa história como "A outra volta do parafuso", somos levados a ver a conquista da probabilidade como a recompensa de uma imaginação voluntariosa. (Se a história fosse narrada na terceira pessoa, a desproporção entre a vontade da governanta e as vontades mais fracas dos outros personagens ficaria ainda mais acentuada.) Mas a governanta captura o leitor também. Ela nos prende de tal modo que sentimos - contra todas as probabilidades, contra uma verdade psicológica claramente demonstrável - que talvez ela tenha de fato percebido a malignidade de uma influência externa. A ideia persiste apesar de tudo que sabemos a respeito do modo como ela gerou os efeitos por ela relatados." (p. 181-182)
E, aí, vocês têm mais duas indicações, uma de conto e uma de filme, se gostaram da temática e da trama do livro do James, cuja leitura é essencial se você gosta de histórias de fantasma.

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Quem já leu o "Northanger Abbey", da Jane Austen, publicado postumamente em 1817, se lembra de "The Mysteries of Udolpho" (de 1794), que os personagens lêem e comentam durante a história. E o mesmo livro da escritora inglesa Ann Radcliffe (cuja obra influenciou inúmeros outros escritores além de Jane Austen, como Mary Shelley, John Keats, Lord Byron, Poe, Charlotte e Emily Brontë, Charles Dickens e Daphne du Maurier) aparece em "A outra volta do parafuso":

"Não que, nessa ocasião, eu não esperasse por mais, pois estava tão profundamente intrigada quanto abalada. Haveria um 'segredo' em Bly - um mistério de Udolpho ou um parente louco, inominável, mantido num confinamento insuspeito?" (p. 35)

Ou seja, para mim, já é hora de ler Udolpho. 

sábado, 22 de setembro de 2012

"Pelos olhos de Maisie", Henry James

Minha última leitura se prolongou por tantos dias que os personagens quase se tornaram membros da minha família... e seria completamente plausível querer oferecer uma família para a Maisie.

Recentemente, li uma monografia, de autoria de Camila Franco Batista, disponibilizada na internet, que se constitui numa análise comparativa entre Atonement, do Ian McEwan, e Northanger Abbey, da Jane Austen, voltada para dois aspectos principais: a metaficção e, no nível temático, o erro de julgamento. A monografia se encontra disponível no link abaixo:


Nesse estudo, há uma referência a um texto de Frank Kermode em que ele comenta as semelhanças entre Atonement e What Maisie Knew (título original do livro de Henry James). Citando a monografia: "Assim como em Reparação, o romance de James é narrado através do ponto de vista de uma criança, que descreve problemas familiares, como o divórcio e o adultério. Para Kermode, o ponto de vista é uma obsessão comum a James e a McEwan, e as personagens Maisie e Briony ilustram esta característica semelhante."

Pelos olhos de Maisie, publicado em 1897, conta a história de Maisie, uma menininha de oito anos, que, após o divórcio dos pais e como resultado de um acordo judicial, passa seis meses com o pai e seis meses com a mãe. A princípio, essa situação não seria tão horrível para a criança, mas não é o caso, visto que os pais de Maisie se odeiam e que a menina vira uma espécie de pombo correio dos absurdos que um dos pais fala sobre o outro. Então, Maisie vive nesse fogo cruzado, completamente carente de atenção e de amor. Além disso, Maisie tem duas governantas: uma na casa de Ida (a mãe) e outra na casa de Beale Farange (o pai), e essas governantas acabam se tornando substitutas dos pais - é delas que Maisie lamenta se separar quando tem que mudar de casa e é delas que sente falta. Além disso, tanto Ida como o sr. Farange contraem o segundo casamento: Ida se casa com sir Claude, e o sr. Farange, com uma das governantas de Maisie, que se torna, portanto, a nova sra. Beale. Ou seja, Maisie se vê dividida entre dois mundos: mundo da mãe x mundo do pai, e essa dualidade irá tornar a vida de Maisie uma sucessão de idas e vindas que, no fim, não vão levá-la a lugar nenhum. Além disso, há outra figura de destaque: a sra. Wix, a outra governanta, que não se encaixa nem no mundo da mãe nem no mundo do pai, e que, descobriremos, é a única a nutrir um amor verdadeiro pela menina. Além disso, Maisie é testemunha presente de tudo o que é dito a seu respeito - os adultos não fazem questão de lhe esconder nada -; tanto é que ela acaba descobrindo, como nós, leitores, já havíamos descoberto desde o início, que ela nunca será MOTIVO, apenas PRETEXTO:

Ao ouvir falar em pretextos, Maisie lembrou-se que fora nesses termos que a sra. Beale se referira a ela de modo enfático, e refletiu que era sua sina ser encarada como tal, estando presente, quando se dependia dela, ou ausente, quando sua falta era lamentada.

Além disso, os pais de Maisie tornarão a se separar de seus respectivos cônjuges. Além disso, sir Claude e a sra. Beale, ex cônjuges dos pais de Maisie, se tornarão amantes.

O que fica claro é que as complicações não param de se suceder na vida de Maisie, que, em determinado momento, nos proporcionará, através de suas analogias de criança, a imagem perfeita para sua condição:

Se agora tornara-se necessário tomar partido, havia ao menos certos dados concretos que indicavam de que lado estava cada um. Maisie, é claro, na posição delicada em que se encontrava, não estava do lado de ninguém; porém sir Claude, ao que tudo indicava, estava do lado dela. Se, portanto, a sra. Wix estava do lado de sir Claude, milady do lado do sr. Perriam e o sr. Perriam, ao que parecia, do lado de milady, restava apenas decidir de que lado estavam a sra. Beale e o sr. Farange. A sra. Beale, sem dúvida, estava, tal como sir Claude, do lado de Maisie, e o papai, era de se imaginar, do lado da sra. Beale. Neste ponto havia uma pequena ambiguidade, uma vez que seu pai, embora estivesse do lado da sra. Beale, não parecia pertencer exatamente ao de sua filha. Quanto mais pensava na situação, mais a menina se convencia de que era uma espécie de jogo das cadeiras, e ficava a perguntar-se se a distribuição de lados não levaria a uma grande correria e a uma troca de lugares. Estava diante de uma mudança constante: pois se até sua mãe e seu padrasto já não estavam do mesmo lado! Era esse o grande acontecimento que ocorrera na casa.

Pensando em tudo isso e no título do livro, podemos fazer duas considerações:

1) Pelos olhos de Maisie, a tradução para o português, faz pensar exatamente na ausência de voz e de direito de escolha de Maisie. É como se ela estivesse amarrada e amordaçada, sendo-lhe permitido apenas VER... e, assim, as ações passam pelos seus olhos, e ela, prisioneira da situação, não pode senão aceitar tudo o que lhe acontece. Na verdade, em alguns momentos, é dada uma liberdade ilusória de decisão a Maisie, que acaba sendo levada a decidir o que querem que ela decida.

[...] porém nem todas aquelas lágrimas tiveram o efeito de afastar da consciência de nossa heroína a ideia de que seria muito bom se ela própria pudesse acertar um acordo em seu próprio interesse.

2) O que acontece é que Maisie não apenas vê, mas vê tudo, o que nos remete ao título original: What Maisie Knew; e, desse modo, não é espantoso, no final, para Maisie, que ela saiba o que vai acontecer, e que nós saibamos que ela já sabia. 

Uma dualidade que se pode identificar claramente é: liberdade x aprisionamento. Ou, talvez, seja melhor falar em "relativização do conceito de liberdade", porque Maisie irá descobrir que "ser livre" nem sempre significa fazer o que se quer. No caso particular dela, "ser livre" não significa poder escolher com quem ficar, significa que os adultos aos quais ela até então estava "presa" não a libertaram, mas se libertaram dela, deixando-a (obrigando-a a ser) livre para ir embora.

E é esse o final de Maisie, que, tendo quatro pais, acaba ficando sem nenhum e sendo acolhida pela única que realmente lhe amava: a sra. Wix.
E, então, termina o livro:

[...] a sra. Wix teve coragem de voltar ao assunto. "Eu não olhei para trás; você olhou?"
"Olhei. Ele não estava lá", disse Maisie.
"Nem na sacada?"
Maisie esperou um momento; em seguida, limitou-se a repetir: "Ele não estava lá".
Também a sra. Wix calou-se por alguns instantes.
"Ele estava com ela", observou por fim.
"Ah, eu sei!", respondeu a criança.
A sra. Wix olhou-a de esguelha. Ainda conseguia se surpreender com o que Maisie sabia.

Como consta em uma das resenhas no final da edição da Penguin Companhia: "[...] expor o enredo de um livro do sr. James é não dizer quase nada. Ele não se ocupa com eventos, e sim com os eventos tal como eles se espelham nos pensamentos, nos impulsos momentâneos, de seus personagens." - no caso específico, nos pensamentos de Maisie.

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Eu quero acreditar que a lentidão dessa minha leitura está relacionada ao fato de que a própria história se arrasta lentamente, o que não se constitui em ponto negativo, muito pelo contrário; antes, estabelece uma unidade entre a confusão (Maisie está constantemente sendo levada de um lado a outro, e de uma pessoa a outra) da história e a sua escritura, com parágrafos longos, muita pontuação... (que, na verdade, é um tipo de escrita que eu muito aprecio, e na qual, por exemplo, Alan Pauls, em O passado, demonstra maestria).

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Logo depois de ler o livro, li, em uma entrevista (que, provavelmente, o Kermode deve ter lido) com o McEwan (aqui), uma colocação muito interessante, do próprio autor, a respeito de Atonement, demonstrando uma influência recebida de Retrato do artista quando jovem, do Joyce, e citando o próprio livro do Henry James:

Interviewer: One of the glories of Atonement is Briony's point of view in the early chapters, when she's still a precocious little girl with an itch to write and a dangerous taste for melodrama. Did it feel like a return to something to be again imagining the world from a child's perspective?

McEwan: It seemed a far deeper immersion. No wanting to shock people or indulge the grotesque allows far greater freedom psychologically. It's always a problem doing children in fiction - the restricted viewpoint can become stifling. I wanted to be able to portray a child's mind while drawing on all the resources of a complex adult language - as James does in What Maisie Knew. I didn't want the limitations of a childlike vocabulary. Joyce does this in the opening pages of A Portrait of the Artist as a Young Man. We've all tried to imitate it. He holds you there in a little boy's sensory and linguistic universe, and it's a piece of magic that glows - and then it's gone, just like childhood itself. Joyce moves on, the language spreads. My way round the problem was to make Briony my "author" and let her describe her childhood self from the inside, but in the language of the mature novelist.

Para arrematar com um trecho de Pelos olhos de Maisie:

"O que eu posso fazer?", perguntou Maisie perplexa, "Mamãe não liga para mim", disse, com toda simplicidade. "Não liga muito, não." Por mais criança que fosse, toda a longa história de sua curta existência estava contida nessas palavras; e era impossível contradizê-la, tal como se ela fosse uma anciã venerável.