sábado, 22 de setembro de 2012

"Pelos olhos de Maisie", Henry James

Minha última leitura se prolongou por tantos dias que os personagens quase se tornaram membros da minha família... e seria completamente plausível querer oferecer uma família para a Maisie.

Recentemente, li uma monografia, de autoria de Camila Franco Batista, disponibilizada na internet, que se constitui numa análise comparativa entre Atonement, do Ian McEwan, e Northanger Abbey, da Jane Austen, voltada para dois aspectos principais: a metaficção e, no nível temático, o erro de julgamento. A monografia se encontra disponível no link abaixo:


Nesse estudo, há uma referência a um texto de Frank Kermode em que ele comenta as semelhanças entre Atonement e What Maisie Knew (título original do livro de Henry James). Citando a monografia: "Assim como em Reparação, o romance de James é narrado através do ponto de vista de uma criança, que descreve problemas familiares, como o divórcio e o adultério. Para Kermode, o ponto de vista é uma obsessão comum a James e a McEwan, e as personagens Maisie e Briony ilustram esta característica semelhante."

Pelos olhos de Maisie, publicado em 1897, conta a história de Maisie, uma menininha de oito anos, que, após o divórcio dos pais e como resultado de um acordo judicial, passa seis meses com o pai e seis meses com a mãe. A princípio, essa situação não seria tão horrível para a criança, mas não é o caso, visto que os pais de Maisie se odeiam e que a menina vira uma espécie de pombo correio dos absurdos que um dos pais fala sobre o outro. Então, Maisie vive nesse fogo cruzado, completamente carente de atenção e de amor. Além disso, Maisie tem duas governantas: uma na casa de Ida (a mãe) e outra na casa de Beale Farange (o pai), e essas governantas acabam se tornando substitutas dos pais - é delas que Maisie lamenta se separar quando tem que mudar de casa e é delas que sente falta. Além disso, tanto Ida como o sr. Farange contraem o segundo casamento: Ida se casa com sir Claude, e o sr. Farange, com uma das governantas de Maisie, que se torna, portanto, a nova sra. Beale. Ou seja, Maisie se vê dividida entre dois mundos: mundo da mãe x mundo do pai, e essa dualidade irá tornar a vida de Maisie uma sucessão de idas e vindas que, no fim, não vão levá-la a lugar nenhum. Além disso, há outra figura de destaque: a sra. Wix, a outra governanta, que não se encaixa nem no mundo da mãe nem no mundo do pai, e que, descobriremos, é a única a nutrir um amor verdadeiro pela menina. Além disso, Maisie é testemunha presente de tudo o que é dito a seu respeito - os adultos não fazem questão de lhe esconder nada -; tanto é que ela acaba descobrindo, como nós, leitores, já havíamos descoberto desde o início, que ela nunca será MOTIVO, apenas PRETEXTO:

Ao ouvir falar em pretextos, Maisie lembrou-se que fora nesses termos que a sra. Beale se referira a ela de modo enfático, e refletiu que era sua sina ser encarada como tal, estando presente, quando se dependia dela, ou ausente, quando sua falta era lamentada.

Além disso, os pais de Maisie tornarão a se separar de seus respectivos cônjuges. Além disso, sir Claude e a sra. Beale, ex cônjuges dos pais de Maisie, se tornarão amantes.

O que fica claro é que as complicações não param de se suceder na vida de Maisie, que, em determinado momento, nos proporcionará, através de suas analogias de criança, a imagem perfeita para sua condição:

Se agora tornara-se necessário tomar partido, havia ao menos certos dados concretos que indicavam de que lado estava cada um. Maisie, é claro, na posição delicada em que se encontrava, não estava do lado de ninguém; porém sir Claude, ao que tudo indicava, estava do lado dela. Se, portanto, a sra. Wix estava do lado de sir Claude, milady do lado do sr. Perriam e o sr. Perriam, ao que parecia, do lado de milady, restava apenas decidir de que lado estavam a sra. Beale e o sr. Farange. A sra. Beale, sem dúvida, estava, tal como sir Claude, do lado de Maisie, e o papai, era de se imaginar, do lado da sra. Beale. Neste ponto havia uma pequena ambiguidade, uma vez que seu pai, embora estivesse do lado da sra. Beale, não parecia pertencer exatamente ao de sua filha. Quanto mais pensava na situação, mais a menina se convencia de que era uma espécie de jogo das cadeiras, e ficava a perguntar-se se a distribuição de lados não levaria a uma grande correria e a uma troca de lugares. Estava diante de uma mudança constante: pois se até sua mãe e seu padrasto já não estavam do mesmo lado! Era esse o grande acontecimento que ocorrera na casa.

Pensando em tudo isso e no título do livro, podemos fazer duas considerações:

1) Pelos olhos de Maisie, a tradução para o português, faz pensar exatamente na ausência de voz e de direito de escolha de Maisie. É como se ela estivesse amarrada e amordaçada, sendo-lhe permitido apenas VER... e, assim, as ações passam pelos seus olhos, e ela, prisioneira da situação, não pode senão aceitar tudo o que lhe acontece. Na verdade, em alguns momentos, é dada uma liberdade ilusória de decisão a Maisie, que acaba sendo levada a decidir o que querem que ela decida.

[...] porém nem todas aquelas lágrimas tiveram o efeito de afastar da consciência de nossa heroína a ideia de que seria muito bom se ela própria pudesse acertar um acordo em seu próprio interesse.

2) O que acontece é que Maisie não apenas vê, mas vê tudo, o que nos remete ao título original: What Maisie Knew; e, desse modo, não é espantoso, no final, para Maisie, que ela saiba o que vai acontecer, e que nós saibamos que ela já sabia. 

Uma dualidade que se pode identificar claramente é: liberdade x aprisionamento. Ou, talvez, seja melhor falar em "relativização do conceito de liberdade", porque Maisie irá descobrir que "ser livre" nem sempre significa fazer o que se quer. No caso particular dela, "ser livre" não significa poder escolher com quem ficar, significa que os adultos aos quais ela até então estava "presa" não a libertaram, mas se libertaram dela, deixando-a (obrigando-a a ser) livre para ir embora.

E é esse o final de Maisie, que, tendo quatro pais, acaba ficando sem nenhum e sendo acolhida pela única que realmente lhe amava: a sra. Wix.
E, então, termina o livro:

[...] a sra. Wix teve coragem de voltar ao assunto. "Eu não olhei para trás; você olhou?"
"Olhei. Ele não estava lá", disse Maisie.
"Nem na sacada?"
Maisie esperou um momento; em seguida, limitou-se a repetir: "Ele não estava lá".
Também a sra. Wix calou-se por alguns instantes.
"Ele estava com ela", observou por fim.
"Ah, eu sei!", respondeu a criança.
A sra. Wix olhou-a de esguelha. Ainda conseguia se surpreender com o que Maisie sabia.

Como consta em uma das resenhas no final da edição da Penguin Companhia: "[...] expor o enredo de um livro do sr. James é não dizer quase nada. Ele não se ocupa com eventos, e sim com os eventos tal como eles se espelham nos pensamentos, nos impulsos momentâneos, de seus personagens." - no caso específico, nos pensamentos de Maisie.

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Eu quero acreditar que a lentidão dessa minha leitura está relacionada ao fato de que a própria história se arrasta lentamente, o que não se constitui em ponto negativo, muito pelo contrário; antes, estabelece uma unidade entre a confusão (Maisie está constantemente sendo levada de um lado a outro, e de uma pessoa a outra) da história e a sua escritura, com parágrafos longos, muita pontuação... (que, na verdade, é um tipo de escrita que eu muito aprecio, e na qual, por exemplo, Alan Pauls, em O passado, demonstra maestria).

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Logo depois de ler o livro, li, em uma entrevista (que, provavelmente, o Kermode deve ter lido) com o McEwan (aqui), uma colocação muito interessante, do próprio autor, a respeito de Atonement, demonstrando uma influência recebida de Retrato do artista quando jovem, do Joyce, e citando o próprio livro do Henry James:

Interviewer: One of the glories of Atonement is Briony's point of view in the early chapters, when she's still a precocious little girl with an itch to write and a dangerous taste for melodrama. Did it feel like a return to something to be again imagining the world from a child's perspective?

McEwan: It seemed a far deeper immersion. No wanting to shock people or indulge the grotesque allows far greater freedom psychologically. It's always a problem doing children in fiction - the restricted viewpoint can become stifling. I wanted to be able to portray a child's mind while drawing on all the resources of a complex adult language - as James does in What Maisie Knew. I didn't want the limitations of a childlike vocabulary. Joyce does this in the opening pages of A Portrait of the Artist as a Young Man. We've all tried to imitate it. He holds you there in a little boy's sensory and linguistic universe, and it's a piece of magic that glows - and then it's gone, just like childhood itself. Joyce moves on, the language spreads. My way round the problem was to make Briony my "author" and let her describe her childhood self from the inside, but in the language of the mature novelist.

Para arrematar com um trecho de Pelos olhos de Maisie:

"O que eu posso fazer?", perguntou Maisie perplexa, "Mamãe não liga para mim", disse, com toda simplicidade. "Não liga muito, não." Por mais criança que fosse, toda a longa história de sua curta existência estava contida nessas palavras; e era impossível contradizê-la, tal como se ela fosse uma anciã venerável.

Um comentário:

  1. Li 'Pelos olhos de Maisie' logo que a Penguin-Companhia o lançou, e foi meu contato mais prazeroso com a obra do Sr. Henry James.

    Antes, havia lido The Portrait of a Lady, numa edição da Penguin britânica (até hoje não sei se amo ou odeio a Isabel) e 'A outra volta do parafuso', numa edição da Abril (achei maçante).

    Maisie é o tipo de obra que te assusta pelo descaso que pode ser direcionado à uma vida que, a princípio, nem te pediu para que a fizesse existir (não que o descaso com os sentimentos já não figurasse no 'Retrato').

    Quanto ao 'O Passado', do Alan Pauls, foi uma das melhores coisa que já li na vida (e releitura obrigatória).


    * estou esperando ansiosamente seu texto sobre Serena.

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