sábado, 1 de junho de 2013

"A outra volta do parafuso", Henry James


Se, como eu, você gosta de sintonizar, quando possível, suas leituras com a situação climática, "A outra volta do parafuso" (ou simplesmente "A volta do parafuso" - no original "The turn of the screw"), de Henry James - história publicada pela primeira vez em 1898 -, é um livro excelente para ser lido em um dia frio, chuvoso e cinzento.

"Naquela noite, cheguei até a começar. O tempo havia fechado, ventava muito lá fora, e à luz do lampião, em meu quarto, com Flora tranquila a meu lado, fiquei um bom tempo sentada diante de uma folha de papel em branco escutando o látego da chuva e as lufadas de vento." (p. 113 - da edição da Penguin Companhia)

Há, no livro, duas histórias, estando a segunda contida na primeira: temos, portanto, uma narrativa moldura (introdutória) e uma narrativa emoldurada (principal). Na primeira narrativa (moldura), narrada em primeira pessoa por uma das personagens presentes na cena, há um cenário clássico de contação de histórias (situação que favorece o emolduramento de narrativas): um grupo de pessoas está reunido, em uma velha casa inglesa, na noite de Natal, ao redor de uma lareira, contando histórias de horror. Entre uma história e outra, um dos presentes, Douglas, afirma conhecer uma história (real) "Do que há de mais insólito, revoltante, horrendo, doloroso." (p. 08); o que, claro, deixa o grupo ansioso por ouvi-la imediatamente; mas Douglas é um exímio contador de histórias (entre tantos herdeiros literários de Sherazade), e consegue, além de suscitar, manter a tensão e a expectativa do grupo enquanto manda buscar, em sua casa em Londres, o manuscrito da história, lhe conferindo (a princípio - que se frise!) um estatuto de verdade, uma vez que foi registrada por escrito pela pessoa que viu e viveu os acontecimentos. 
A segunda história (emoldurada) - que Douglas lê para o grupo - é a história de horror propriamente dita; ela é narrada/escrita em primeira pessoa por uma jovem governanta que relata os acontecimentos de um período de tempo em que trabalhou em uma mansão de campo inglesa chamada Bly. Tal qual a Jane Eyre, do romance da Charlotte Brontë (de 1847), essa jovem governanta aceita um emprego - de um cavalheiro bastante peculiar - em um casarão isolado do mundo e da sociedade (por si só propício a ambientar histórias de terror) para cuidar de uma garotinha - e, posteriormente, também de seu irmão, que, a princípio, está no colégio e voltará para casa nas férias. A exemplo de Douglas, a narradora/escritora da segunda narrativa é uma excelente contadora de histórias, com uma forte tendência a hipérboles. Acontece que a governanta começa a ver pessoas estranhas pela casa e por seus arredores, e acaba por descobrir que vê os fantasmas de duas pessoas que já trabalharam em Bly (uma delas, inclusive, é sua antecessora: a antiga governanta).
E é, então, que a história começa a ficar interessante (mas não exatamente de um modo bom). Eu gosto de narração em primeira pessoa, gosto de romance epistolar, de narrativas em forma de diário... mas é sabido que o narrador de primeira pessoa é o menos confiável e o mais parcial, justamente porque, por deter o poder da narração, não permite ao leitor enxergar os acontecimentos por outros pontos de vista, que possibilitariam um maior conhecimento dos fatos narrados. E, então, a questão dessa segunda narrativa é: os acontecimentos narrados realmente aconteceram? Sim? Não? Se sim: eles realmente aconteceram da maneira narrada pela governanta? Aquela foi apenas a visão (limitada e/ou distorcida) da governanta? Foi tudo produto de sua imaginação? Afinal, alguém mais realmente viu o que ela viu; ou apenas ela viu, acreditando (querendo acreditar) que os outros também viam? E a história vai ficar bastante horripilante; e o final é chocante! 

Para exemplificar a tensão estabelecida entre a realidade e a imaginação por parte da governanta:

"Juntar-me a eles não era um problema, mas falar-lhes continuou a ser, como sempre, um empreendimento acima de minhas forças - envolvia, na proximidade, obstáculos tão intransponíveis quanto antes. Essa situação prolongou-se por um mês, e com novos agravantes e toques específicos; acima de tudo, cada vez mais intenso, o toque de uma leve consciência irônica da parte de meus pupilos. Não se tratava apenas, disso estou tão certa agora quanto estava na época, de minha infernal imaginação: era perfeitamente visível que eles estavam cientes do meu dilema e que essa estranha relação, de certo modo, constituía, por um bom tempo, a atmosfera em que vivíamos. Não quero dizer que eles fizessem caretas ou qualquer outra vulgaridade, pois esse não era um de seus perigos: quero dizer, sim, que o indizível e o intocável se tornaram, entre nós, os elementos mais presentes, entendimentos tácitos. Era como se, em certos momentos, nossos olhares encontrassem constantemente coisas que não podiam ser vistas, como se saíssemos de repente de becos que se revelavam sem saída, fechando com um pequeno estrépido que nos fazia entreolhar-nos - pois, como todos os estrépidos, era mais ruidoso do que fora nossa intenção - as portas que, por indiscrição, tínhamos aberto. Todos os caminhos levam a Roma, e havia ocasiões em que tínhamos a impressão de que quase todos os campos do saber e assuntos de conversação bordejavam territórios proibidos. Era território proibido a questão da volta dos mortos em geral e, em especial, do que quer que restasse, na memória, dos amigos que as crianças tinham perdido. Havia dias que eu eu seria capaz de jurar que um deles, com uma pequena cutucada invisível, dissera ao outro: 'Ela acha que vai conseguir desta vez - mas não vai!'. 'Conseguir', no caso, seria fazer uma referência direta, por exemplo - pela primeira vez, de certo modo -, à moça que os preparara para a minha disciplina." (p. 93-94)

Como fica claro, não temos acesso ao que de fato as outras personagens pensam, porque a visão que temos delas é filtrada pela visão da narradora. Mas fica evidente como nada é exatamente afirmado, mas sugerido, inferido, suspeitado...
Mas, ao final, duas leituras são possíveis, porque não há nada material no texto que descarte uma delas afirmando a outra como verdade absoluta e inquestionável - nós, brasileiros, aliás, conhecemos muito bem esse tipo de dúvida literária. Portanto, há essa tensão causada pela narrativa, que, embora pareça esfregar na nossa cara a verdade, deixa muita ambiguidade, muitas coisas dúbias, muitas sugestões, de maneira que não é possível ter certeza absoluta do que de fato aconteceu, o que torna o final ainda mais chocante.

Na edição da Penguin Companhia (como em vários volumes dessa coleção), há um posfácio bastante interessante de um professor chamado David Bromwich, que traz, inclusive, bastante referência bibliográfica de estudos sobre "A outra volta do parafuso" e sobre o Henry James. Para finalizar, acho interessante citar o seguinte trecho:
"Todas essas narrativas [...] causam um certo desconforto que perdura após a leitura. As forças sobrenaturais conservam seu poder sobre a imaginação mesmo depois que uma explicação natural de suas origens se revela suficiente. Mas isso é característico da psicologia das narrativas fantásticas em que o mistério sobrevive à sua explicação: o conto de E.T.A. Hoffmann, "O homem de areia" (1816), e o filme "Vertigem" (1958), de Alfred Hitchcock são exemplos óbvios. Numa história como "A outra volta do parafuso", somos levados a ver a conquista da probabilidade como a recompensa de uma imaginação voluntariosa. (Se a história fosse narrada na terceira pessoa, a desproporção entre a vontade da governanta e as vontades mais fracas dos outros personagens ficaria ainda mais acentuada.) Mas a governanta captura o leitor também. Ela nos prende de tal modo que sentimos - contra todas as probabilidades, contra uma verdade psicológica claramente demonstrável - que talvez ela tenha de fato percebido a malignidade de uma influência externa. A ideia persiste apesar de tudo que sabemos a respeito do modo como ela gerou os efeitos por ela relatados." (p. 181-182)
E, aí, vocês têm mais duas indicações, uma de conto e uma de filme, se gostaram da temática e da trama do livro do James, cuja leitura é essencial se você gosta de histórias de fantasma.

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Quem já leu o "Northanger Abbey", da Jane Austen, publicado postumamente em 1817, se lembra de "The Mysteries of Udolpho" (de 1794), que os personagens lêem e comentam durante a história. E o mesmo livro da escritora inglesa Ann Radcliffe (cuja obra influenciou inúmeros outros escritores além de Jane Austen, como Mary Shelley, John Keats, Lord Byron, Poe, Charlotte e Emily Brontë, Charles Dickens e Daphne du Maurier) aparece em "A outra volta do parafuso":

"Não que, nessa ocasião, eu não esperasse por mais, pois estava tão profundamente intrigada quanto abalada. Haveria um 'segredo' em Bly - um mistério de Udolpho ou um parente louco, inominável, mantido num confinamento insuspeito?" (p. 35)

Ou seja, para mim, já é hora de ler Udolpho. 

Um comentário:

  1. O livro é incrível e, para mim, está claro que foi a inspiração para "A menina que não sabia ler". O filme também é ótimo e um dos raros casos em que a adaptação supera a obra original (para quem está curioso: http://portugues.free-ebooks.net/ebook/A-Outra-Volta-Do-Parafuso).

    bom trabalho com resenha! (:

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