sexta-feira, 23 de agosto de 2013

"A visita cruel do tempo", Jennifer Egan




"É essa a realidade, não é? Vinte anos depois, a sua beleza já foi para o lixo, especialmente quando arrancaram fora metade das suas entranhas. O tempo é cruel, não é? Não é assim que se diz?" (p. 126)


A visita cruel do tempo (2011), de Jennifer Egan, merece ser lido. Eu vinha adiando essa leitura desde o ano passado, quando o livro foi publicado no Brasil e a escritora participou da Tenda dos Escritores na FLIP junto com o Ian McEwan (um dos meus autores preferidos). Não li mais nada da Egan, mas acho que não seria exagero dizer que A visita cruel do tempo seria suficiente para, sozinho, destacá-la como um nome importante da literatura contemporânea.

Primeiramente, a estrutura do livro é bastante interessante: podemos chamá-lo de romance, mas os capítulos se sucedem como contos, de maneira que seria possível a leitura separada de cada um deles, que assumiriam, mesmo isolados, um sentido completo. Mas há uma unidade, claro, e uma história vai se ligando à outra através das personagens, que, devido a essa configuração parcialmente independente das partes, vão se revezando ora como personagens principais (em seus capítulos específicos), ora como personagens secundárias, ora ficando completamente ausentes - o que, para mim, gerou um efeito bem interessante, porque, de fato, cada pessoa é protagonista da sua própria história, mas bilhões de outras histórias estão acontecendo simultaneamente. As duas personagens que abrem e encerram o livro, ou seja, aquelas que poderíamos chamar de protagonistas, são Sasha e Bennie - eu diria mesmo que Sasha é a personagem principal do livro, já que, mesmo no final, quando ela não está presente, sua ausência é uma presença importante, que move as outras personagens. Sasha é a personagem que permite o caráter cíclico do livro. Logo no primeiro capítulo, há uma cena em que Sasha está em seu apartamento com um rapaz chamado Alex, que acabou de conhecer e que acabou de chegar a Nova York; Alex está deslumbrado, tudo lhe é novo e interessante, inclusive a banheira na cozinha de Sasha - que, pensava ele, era uma coisa que não existia mais. Naquela noite, Sasha fica pensando sobre o futuro, se perguntando se daí a alguns anos Alex realmente ainda se lembrará dela ou se apenas terá uma vaga lembrança de uma moça que conheceu logo quando chegou à cidade e que tinha uma banheira na cozinha. E, no capítulo final, em que Sasha não aparece, é exatamente assim que Alex se lembra dela: como uma moça que conheceu logo quando chegou à cidade e que tinha uma banheira na cozinha. Na ocasião, Alex está trabalhando para Bennie, ex patrão de Sasha, e, ao se lembrar melhor da moça e perguntar a Bennie sobre ela, os dois resolvem ir até seu antigo apartamento, numa tentativa, ainda que não muito esperançosa (pois Bennie sabe que ela havia se casado, e, provavelmente, mudado de endereço), de encontrá-la. Não a encontram. E, logo quando estão indo embora, Alex escuta um barulho e, ao se virar, vê uma moça tentando abrir um porta com uma chave: Sasha foi embora dali, mas outras pessoas continuarão vivendo e/ou começando sua história naquele mesmo ponto - o que lembra o final de 360, último filme do Fernando Meirelles.

"Um barulho de saltos estalando na calçada pontuou o silêncio. Alex abriu os olhos de repente, e tanto ele quanto Bennie se viraram - na verdade, deram um giro com o corpo todo, esforçando-se para distinguir Sasha em meio à escuridão cinzenta. Mas era só outra garota, jovem e recém-chegada à cidade, tentando pôr a chave na fechadura." (p. 333)

Sim, a passagem do tempo, como já alegado no próprio título, é uma constante no livro. A sucessão da história não acontece em ordem cronológica linear, de modo que, além de focalizarem personagens diferentes, há saltos temporais significativos de um capítulo para outro; o que coloca lado a lado a mesma personagem em diferentes momentos de sua vida, ora evidenciando, por exemplo, a discrepância entre seus planos e seus fracassos, ora mostrando como as personagens mudaram ou tiveram que mudar. (E eu sei que algumas pessoas fizeram uma leitura muito mais otimista que a minha.) Além dessa sucessão não cronológica dos acontecimentos, a narrativa dos próprios capítulos gera uma suspensão do tempo presente para adiantar acontecimentos de muitos anos para o futuro; por exemplo, às vezes, o narrador está falando sobre o presente de uma personagem dançando na praia e, então, faz o salto, contando que daí a vinte anos essa personagem se suicidará e que a imagem que ficará dessa personagem para sua irmã é (voltando para o presente das personagens) exatamente eles dois ali dançando juntos na praia. Na minha leitura, ao adiantar os dados da morte da personagem, o espaço  temporal percorrido entre o momento presente e sua morte é anulado, gerando uma espécie de indiferença pelo percurso da personagem: não importa o que ela fez nesse meio tempo (e algumas das coisas que aconteceram nesse ínterim serão narradas em outros momentos - ou do mesmo capítulo ou de capítulos seguintes), pois, passados os vinte anos, ela se suicidará. Ou seja, a visita do tempo é muito cruel.

A segunda parte do livro, inclusive, é a "De A a B", nome do novo CD de uma ex estrela do rock, que, agora, já velho e doente, pretende fazer uma turnê suicida. Mas, seguindo uma dica do próprio Bennie, eu fiquei pensando em "De A a B" como o percurso das personagens mesmo: como elas chegaram de A a B. Na vida, digamos, poderíamos marcar os pontos da seguinte maneira:

A = nascimento 
B = morte

Na literatura, poderíamos estabelecer duas marcações:

I:
A = primeira aparição da personagem no livro
B = última aparição da personagem no livro

II:
A = momento mais antigo da vida da personagem contado no livro
B = último momento da vida da personagem contado no livro

Como a trama do livro da Egan não é simples, a última aparição da personagem no livro nem sempre coincidirá com o último momento da vida da personagem contado no livro; como é o caso do exemplo anterior, em que o narrador adianta a narração da morte da personagem, quando a personagem ainda é uma criança, e a sua última aparição no livro é em uma dança com a irmã na areia da praia, o que não impede que essa personagem apareça em momentos posteriores da narrativa através das lembranças de outra personagem.

Na verdade, o que eu queria mesmo dizer é que a Egan tem um poder invejável de condução de narrativa. A maneira como ela conduz as histórias particulares das personagens e a história maior do livro é sensacional. E ela experimenta muito, também. Acredito que já é conhecido de todo mundo que no livro, por exemplo, há um capítulo narrado em segunda pessoa e um capítulo em forma de apresentação de power point - ressaltando, claro, que essas experimentações não são gratuitas, tudo faz sentido dentro do texto. E, embora o tempo seja o norte do livro, a Egan trata de muitos outros assuntos, como, por exemplo, da tecnologia. E a música (predominantemente o rock) acompanha de perto as personagens, sendo fundamental no desenrolar de suas histórias. Como diz um dos comentários da capa do livro: "A música funciona tanto como sujeito quanto como metáfora à medida que Egan explora a mutabilidade do tempo, o destino e a responsabilidade individual na pós-tecnologia".

Enfim, como constou no San Francisco Chronicle: "Como um disco perfeito, esse livro pede uma repetição imediata". 

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Há uma personagem que fica o tempo todo criando conceitos, como: Ressentimento Estrutural, Afeto Estrutural, Incompatibilidade Estrutural, Desejo Estrutural, Fixação Estrutural... dos quais o mais interessante é: "Insatisfação Estrutural: retornar a circunstâncias outrora agradáveis depois de ter experimentado uma forma de vida mais emocionante ou mais opulenta, e descobrir que não consegue mais suportá-las" (p. 84). Pergunta: vocês também não sofrem de insatisfação estrutural ao terminar de ler um livro?

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Com o McEwan, na FLIP 2012.

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