The New York Trilogy, do escritor norte-americano Paul Auster, é composto por "City of Glass", "Ghosts" e "The Locked Room", e foi publicado em 1987, quando Auster, que já traduzia literatura, decidiu escrever seus próprios livros - para nossa alegria (na verdade, ele já havia publicado um livro anterior, Squeeze Play, usando o pseudônimo Paul Benjamin).
Assim como o diretor de cinema francês Christophe Honoré coloca, via de regra, seus personagens para caminharem bastante por Paris, Auster, na trilogia, faz seus personagens caminharem pelas ruas nova-iorquinas por boa parte das histórias, sem, na verdade, haver um lugar ou alguém que os acolha. É como canta alguém no último filme do Honoré, Les bien-aimés: "I want to go home but where can I go? Heaven knows. I want to go home a place that will be heavenly. I want to go home but where can I go? Heaven knows. Heaven knows, I'm miserable now." A Nova York de Auster não é uma Nova York sentimental, como, por exemplo, a de Woody Allen; a de Auster é fria, não acolhedora de seus habitantes, que vivem o paradoxo - característico das grandes metrópoles - da solidão em meio à multidão; embora gravada na memória dos personagens, não tem memória deles, de modo que as pessoas podem desaparecer e nunca mais serem encontradas, sem que fiquem marcas ou rastros, como se nunca tivessem existido ali, como se não tivessem passado de invenções ou de delírios; as mesmas linhas telefônicas, que podem se cruzar e aproximar duas pessoas que de outro modo não se encontrariam, são as mesmas que são canceladas, que estão sempre ocupadas e que impossibilitam que as pessoas consigam se comunicar.
Assim como o diretor de cinema francês Christophe Honoré coloca, via de regra, seus personagens para caminharem bastante por Paris, Auster, na trilogia, faz seus personagens caminharem pelas ruas nova-iorquinas por boa parte das histórias, sem, na verdade, haver um lugar ou alguém que os acolha. É como canta alguém no último filme do Honoré, Les bien-aimés: "I want to go home but where can I go? Heaven knows. I want to go home a place that will be heavenly. I want to go home but where can I go? Heaven knows. Heaven knows, I'm miserable now." A Nova York de Auster não é uma Nova York sentimental, como, por exemplo, a de Woody Allen; a de Auster é fria, não acolhedora de seus habitantes, que vivem o paradoxo - característico das grandes metrópoles - da solidão em meio à multidão; embora gravada na memória dos personagens, não tem memória deles, de modo que as pessoas podem desaparecer e nunca mais serem encontradas, sem que fiquem marcas ou rastros, como se nunca tivessem existido ali, como se não tivessem passado de invenções ou de delírios; as mesmas linhas telefônicas, que podem se cruzar e aproximar duas pessoas que de outro modo não se encontrariam, são as mesmas que são canceladas, que estão sempre ocupadas e que impossibilitam que as pessoas consigam se comunicar.
"City of Glass" é a história de um escritor chamado Daniel Quinn, que, antes poeta, após a morte da mulher e do filho se dedica à escrita de uma série de romances policiais de sucesso, assinados com o pseudônimo William Wilson (nome de um personagem e de um conto de Edgar Allan Poe; e é evidente que a escolha do nome não é aleatória, pois o conto de Poe trata da figura do duplo, motivo que dá força a um dos temas principais do livro de Auster: a problemática da identidade). Um determinado dia, a altas horas da noite, Quinn começa a receber telefonemas estranhos, de uma pessoa que o confunde com um detetive chamado Paul Auster; ao invés de esclarecer o mal entendido, Quinn decide assumir a identidade da pessoa com a qual lhe confundem, e, desse modo, se vê investigando um homem, Peter Stillman, que, suspeitam o filho e a nora, pretende matar o próprio filho, também Peter Stillman (e o livro é cheio de personagens com mesmo nome, de gêmeos, de pessoas que se parecem imensamente, pequenos dados que vão se juntando e dando força à questão identitária vivida pelos personagens principais). Mas, ao invés de salvar o rapaz (na verdade, não se sabe se o pai realmente pretendia matar o filho, só se tem a palavra da nora e o depoimento do filho), Quinn acabará se perdendo: perderá sua casa, sua vida, sua identidade. E o principal é que o personagem aceita tudo isso com muita naturalidade. E o leitor se sente inconformado/incomodado com tanta conformidade, porque Quinn aceita as situações mais estranhas, mais absurdas: sem questionar. Tal qual Dom Quixote (figura bastante presente na história) e sua obsessão pelas histórias de cavalaria, Quinn se tornará tão obcecado pela investigação, por observar o outro, que acabará se tornando a verdadeira vítima em seu voyeurismo levado às últimas consequências, e acabará enfrentando seus próprios moinhos. Os demais personagens envolvidos já desapareceram, já não há mais nada a ser investigado, mas o protagonista continua irremovível de seu lugar de observação. Essa obsessão pelo outro evidenciará a questão da falta/busca de identidade vivida não apenas por Quinn, mas pelos protagonistas das outras duas histórias também; a obsessão é tamanha que, não apenas observar, esses protagonistas desejam assumir a identidade daqueles que observam, como se, na assunção dessas outras identidades, pudessem se livrar de seus próprios fantasmas.
"As he wandered through the station, he reminded himself of who he was supposed to be. The effect of being Paul Auster, he had begun to learn, was not altogether unpleasant. Although he still had the same body, the same mind, the same thoughts, he felt as though he had somehow been taken out of himself, as if he no longer had to walk around with the burden of his own consciousness. By a simple trick of the intelligence, a deft little twist of naming, he felt incomparably lighter and freer. At the same time, he knew it was all an illusion. But there was a certain comfort in that. He had not really lost himself; he was merely pretending, an he could return to being Quinn whenever he wished. The fact that there was now a purpose to his being Paul Auster - a purpose that was becoming more and more important to him - served as a kind of moral justification for the charade and absolved him of having to defend his lie. For imagining himself as Auster had become synonynous in his mind with doing good in the world." (p. 50-51 - "City of Glass")
Em "Ghosts", um jovem detetive chamado Blue é contratado por um homem chamado White, para vigiar um homem chamado Black. O motivo? Não se sabe. White aluga, para Blue, um apartamento em frente ao apartamento de Black, e a função do detetive é observar Black e detalhar todos seus movimentos em relatórios semanais a serem enviados a White. Enclausurado no apartamento, Blue se torna Daniel Quinn: um homem solitário, sem nada que o ligue ao mundo "lá fora" - já que perdeu até a "future Mrs. Blue" -, e que vive exclusivamente para sua observação. Em determinado momento, descobrir-se-á que as pessoas não são exatamente quem parecer ser, e essa problemática de identidade acaba se tornando o principal fantasma de Blue, assim como o é de Quinn em "City of Glass". O interessante é o paralelismo que se estabelece entre o ambiente da grande metrópole - no caso, Nova York - e a mente dos personagens, pois ambos (exterior e interior) se apresentam de forma labiríntica, de modo que, mesmo quando o personagem está trancado em um quarto, esquecido da e pela vida que borbulha nas ruas nova-iorquinas, ele está, além de fechado em um quarto, preso e adentrando cada vez mais profundamente seus próprios labirintos.
A essa altura, é possível identificar muitas similaridades entre as duas primeiras histórias, que, embora com casos distintos e com desfechos bastante diversos, acabam sendo duas possibilidades para uma mesma ideia inicial, duas variações do mesmo tema. De repente, não é difícil imaginar Quinn e Blue como o mesmo personagem, principalmente se considerarmos que ambos se dedicam à assunção de diversas identidades, como se, assumindo-se como o outro, pudessem se livrar de si mesmos, como se outra existência - qualquer que seja - fosse, via de regra, melhor do que as suas; desse modo, seria totalmente possível que Quinn (sobre cujo destino o final de "City of Glass" não nos esclarece) tenha se tornado Blue, que, por sua vez, se experimenta em diversos outros. A obsessão pela observação acontece porque, afinal, é a única coisa a qual o personagem pode se apegar, e quando essa "relação" se rompe ou é desestabilizada, desestabiliza-se também o personagem. A única maneira de tentar ordenar o caos do mundo e da vida seria através da escrita, a qual os personagens se dedicam. No entanto, quem quer que se dedique à escrita sabe que esse pode se tornar, principalmente para quem já não está em seu melhor momento, justamente o empurrão necessário para a loucura.
"Still, it looms as a perverse temptation, and Blu must struggle with himself for some time before fighting it off. He goes back to the beginning and works his way through the case, step by step. Determined to do exactly what has been asked of him, he painstakingly composes the report in the old style, tackling each detail with such care and aggravating precision that many hours go by before he manages to finish. As he reads over the results, he is forced to admit that everything seems accurate. But then why does he feel so dissatisfied, so troubled by what he has written? He says to himself: what happened is not really what happened. For the first time in his experience of writing reports, he discovers that words do not necessarily work, that it is possible for them to obscure the things they are trying to say. Blue looks around the room and fixes his attention on various objects, one after the other. He sees the lamp and says to himself, lamp. He sees the bed and says to himself, bed. He sees the notebook and says to himself, notebook. It will do not do to call the lamp a bed, he thinks, or the bed a lamp. No, these words fit snugly around the things hey stand for, and the moment Blue speaks them, he feels a deep satisfaction, as though he has just proved the existence of the word." (p. 145 - "Ghosts")
De modo que o personagem precisa nomear as coisas do mundo, porque é assim que elas passam a existir e é assim que se ordena o caos, mas e quando não se consegue nomeá-las? Esse foi o primeiro livro do Auster que li, mas, lendo sobre o autor, percebi que esse tema é recorrente em sua obra, e uma de suas principais influências é a teoria psicanalítica de Lacan, segundo a qual nós observamos o mundo por meio de nossos sentidos, mas o mundo que nós sentimos é estruturado nas nossas mentes através da linguagem, assim como é estruturado o nosso subconsciente. E se só se pode perceber o mundo através da linguagem, é inevitável que seja gerado um sentimento de que algo está sendo perdido, algo que está fora ou além da linguagem, porque sempre haverá algo que não pode ser dito ou mesmo pensado, mas apenas sentido.
A última história - minha preferida - é sobre um homem (o protagonista) procurado por Sophie, a mulher de seu ex melhor amigo, Fanshawe, que sumiu há vários meses e que, acredita-se, esteja morto. Antes de desaparecer, Fanshawe pediu a Sophie que, se algo lhe acontecesse, ela procurasse o protagonista e lhe entregasse todos seus escritos (e são muitos) a fim de que o amigo, crítico literário, decidisse se valia a pena publicar a obra ou não. Essa é a única história escrita em primeira pessoa, as outras duas são escritas em terceira. E, embora essa seja a mais diferente das três, superabundam as semelhanças, inclusive com cenas que se repetem quase que identicamente, como se você pudesse presenciar o que aconteceu em um espaço de tempo que, em outra história, havia sido apenas mencionado; e é essa última história, portanto, que funcionará como o elo de ligação do livro. No processo de ler, conhecer e publicar a obra (sensacional) de Fanshawe, o protagonista se tornará obcecado pelo amigo, que sempre foi uma figura de extrema admiração tanto para ele como para todas as outras pessoas. Eis o dilema vivido pelos outros dois protagonistas se presentificando novamente.
Trata-se, portanto, de histórias de investigação, mas não propriamente do tipo de história detetivesca com a qual estamos habituados. A situação inicial de história policial vai situar os personagens em um patamar no qual, na verdade, a investigação original acaba por se tornar uma possibilidade para a vivência de uma outra espécie de investigação.
A dinâmica dos personagens me fez pensar no "Copie conforme", do Kiarostami, no qual acompanhamos dois personagens (interpretados por Julliete Binoche e por William Shimell) que se revezam em ser ora dois completos desconhecidos ora um antigo casal. Os personagens da trilogia de Auster estão o tempo todo se alternando, se camuflando, se transformando, o que me gerou a sensação de que tudo o mais no livro está congelado enquanto os personagens estão em constante rotação. É na última história que isso se torna mais pungente, porque os personagens são/não são/podem ser/não podem ser os mesmos que já apareceram nas outras duas histórias anteriores. Ninguém é exatamente uma única pessoa; mas também estive pensando: se uma pessoa se experimenta em tantas identidades diferentes, ela não deixará de ter uma unidade, de ter algo que a constitua como ela mesma? Assim, é como se os personagens estivessem circulando livremente de uma história para a outra, e, nessa circulação, as histórias estivessem sendo reescritas. E é por isso que me parece que cada um dos títulos podem servir não apenas a sua, mas as três histórias:
"City of Glass": porque os personagens estão se refletindo uns nos outros.
"Ghosts": porque os personagens, ao se obcecarem por outros personagens, acabam se tornando vítimas da figura ou da imagem dessas pessoas que não estão de fato presentes em suas vidas.
"The Locked Room": porque os personagens são solitários, se afastam do mundo, da cidade, das pessoas, da família e se isolam em um quarto trancado, literalmente ou não.
"Yes. A language that will at last say what we have to say. For our words no longer correspond to the world. When things were whole, we felt confident that our words could express them. But little by little these things have broken apart, shattered, collapsed into chaos. And yet our words have remained the same. They have not adapted themselves to the new reality. Hence, every time we try to speak of what we see, we speak falsely, distorting the very thing we are trying to represent. It's made a mess of everything. But words, as you yourself understand, are capable to change. The problem is how to demonstrate this. That is why I now work with the simplest means possible - so simple that even a child can grasp what I am saying. Consider a word that refers to a thing - 'umbrella', for example. When I say the word 'umbrella', you see the object in your mind. You see a kind of stick, with collapsible metal spokes on top that form an armature for a waterproof material which, when opened, will protect you from the rain. This last detail is important. Not only is an umbrella a thing, it is a thing tha performs a function - in other words, expresses the will of man. When you stop to think of it, every object is similar to the umbrella, in that it serves a function. A pencil is for writing, a shoe is for wearing, a car is for driving. Now, my question is this. What happens when a thing no longer performs its function? Is it still the thing, or has it become something eles? When you rip the cloth off the umbrella, is the umbrella still an umbrella? You open the spokes, put them over your head, walk out into the rain, and you get drenched. Is it possible to go on calling this object an umbrella? In general, people do. At the very limit, they will say the umbrella is broken. To me this is a serious error, the source of all our troubles. Because it can no longe perform its function, the umbrella has ceased to be an umbrella. It might resemble an umbrella, it might once have been an umbrella, but now it has changed into something else. The word, however, has remained the same. Therefore, it can no longer express the thing. It is imprecise; it is false; it hides the thing it is supposed to revel. And if we cannot even name a common, everyday object that we hold in our hands, how can we expect to speak of the things that truly concern us? Unless we can begin to embody the notion of change in the words we use, we will continue to be lost." (p. 76-77 - "City of Glass")
A última história - minha preferida - é sobre um homem (o protagonista) procurado por Sophie, a mulher de seu ex melhor amigo, Fanshawe, que sumiu há vários meses e que, acredita-se, esteja morto. Antes de desaparecer, Fanshawe pediu a Sophie que, se algo lhe acontecesse, ela procurasse o protagonista e lhe entregasse todos seus escritos (e são muitos) a fim de que o amigo, crítico literário, decidisse se valia a pena publicar a obra ou não. Essa é a única história escrita em primeira pessoa, as outras duas são escritas em terceira. E, embora essa seja a mais diferente das três, superabundam as semelhanças, inclusive com cenas que se repetem quase que identicamente, como se você pudesse presenciar o que aconteceu em um espaço de tempo que, em outra história, havia sido apenas mencionado; e é essa última história, portanto, que funcionará como o elo de ligação do livro. No processo de ler, conhecer e publicar a obra (sensacional) de Fanshawe, o protagonista se tornará obcecado pelo amigo, que sempre foi uma figura de extrema admiração tanto para ele como para todas as outras pessoas. Eis o dilema vivido pelos outros dois protagonistas se presentificando novamente.
Trata-se, portanto, de histórias de investigação, mas não propriamente do tipo de história detetivesca com a qual estamos habituados. A situação inicial de história policial vai situar os personagens em um patamar no qual, na verdade, a investigação original acaba por se tornar uma possibilidade para a vivência de uma outra espécie de investigação.
A dinâmica dos personagens me fez pensar no "Copie conforme", do Kiarostami, no qual acompanhamos dois personagens (interpretados por Julliete Binoche e por William Shimell) que se revezam em ser ora dois completos desconhecidos ora um antigo casal. Os personagens da trilogia de Auster estão o tempo todo se alternando, se camuflando, se transformando, o que me gerou a sensação de que tudo o mais no livro está congelado enquanto os personagens estão em constante rotação. É na última história que isso se torna mais pungente, porque os personagens são/não são/podem ser/não podem ser os mesmos que já apareceram nas outras duas histórias anteriores. Ninguém é exatamente uma única pessoa; mas também estive pensando: se uma pessoa se experimenta em tantas identidades diferentes, ela não deixará de ter uma unidade, de ter algo que a constitua como ela mesma? Assim, é como se os personagens estivessem circulando livremente de uma história para a outra, e, nessa circulação, as histórias estivessem sendo reescritas. E é por isso que me parece que cada um dos títulos podem servir não apenas a sua, mas as três histórias:
"City of Glass": porque os personagens estão se refletindo uns nos outros.
"Ghosts": porque os personagens, ao se obcecarem por outros personagens, acabam se tornando vítimas da figura ou da imagem dessas pessoas que não estão de fato presentes em suas vidas.
"The Locked Room": porque os personagens são solitários, se afastam do mundo, da cidade, das pessoas, da família e se isolam em um quarto trancado, literalmente ou não.
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