Já dizia Tolstói: "Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.". Para o livro de Faulkner, o adjetivo "infeliz" pode ser substituído, por exemplo, por "problemática", "destrutiva" ou "decadente". Como afirma Jason (um dos personagens do romance) em determinado momento: "A senhora ia pular pra fora da cova ah se não ia. Eu digo, não obrigado mulher é coisa que não me falta se eu me casasse eu ia acabar descobrindo que ela era viciada em droga, sei lá. É a única coisa que ainda não teve nesta família, eu digo." (p. 271)
A história de "O som e a fúria" (no original: "The Sound and the Fury"), publicado pela primeira vez em 1929, pelo escritor estadunidense William Faulkner, é centrada em uma tradicional família aristocrática do sul dos Estados Unidos, os Compson. A família Compson é formada por Jason Compson, sua mulher, Caroline Bascomb, e seus filhos: Quentin, Candace (Caddy), Jason e Benjamin (Benjy, nascido Maury); além desses personagens, mora na propriedade uma família de negros que trabalham para os Compson, cuja matriarca, Dilsey, é a testemunha direta da destruição da família. Também há tio Maury, irmão de Caroline, e Quentin, filha bastarda de Caddy.
Mais especificamente, acompanhamos a narração do declínio e da dissolução dessa família em quatro partes, cada uma narrada por uma voz narrativa diferente, que o leitor vai identificando aos poucos:
Primeira parte: 7 de abril de 1928
Narrador: Benjamin Compson
Segunda parte: 2 de junho de 1910
Narrador: Quentin Compson
Terceira parte: 6 de abril de 1928
Narrador: Jason Compson
Quarta parte: 8 de abril de 1928
Narrador: de 3ª pessoa que focaliza Dilsey
No entanto, os acontecimentos narrados não se resumem aos acontecimentos desses quatro dias específicos, porque os narradores fazem saltos significativos de tempo e mesclam, o tempo todo, o momento presente com diferentes e inúmeros momentos do passado, em uma técnica narrativa conhecida como fluxo de consciência, na qual se evidencia o processo de pensamento dos personagens, e que, portanto, se constrói sobre suas associações, suas analogias (por exemplo: um determinado fato presente pode lembrar ao personagem um fato da infância); como essas associações são muito particulares do personagem (que é quem tem as lembranças), nem sempre o texto fica claro para o leitor, o que contribui para que o leitor viva, ao ter que lidar com essa narrativa caótica, o caos vivido pelo próprio personagem. Muitos acontecimentos serão narrados mais de uma vez, sob diferentes pontos de vista, e é na junção das quatro partes que vai se montando um retrato mais completo sobre os Compson; desse modo, da mesma maneira que os personagens têm suas memórias, me parece que há uma memória do próprio livro, pois o leitor vai resgatando a todo momento trechos anteriores enquanto a narrativa segue. E cada uma das partes tem um tom particular, que condiz com a vivência do narrador em questão, e a última parte - narrada em terceira pessoa - apresenta uma narrativa mais simples, mais linear, menos fragmentada; depois de experimentarmos (na estrutura narrativa) a fúria compsoniana de ser, nos é oferecido um relato, um registro exterior dessa família, pelo único narrador que não vive naquele ambiente e naquela família conturbada. O personagem focalizado nessa última parte por esse narrador de terceira pessoa é Dilsey, a testemunha do declínio dos Compson:
"Dilsey não emitia nenhum som, seu rosto não tremia enquanto as lágrimas desciam em sulcos profundos e tortos, caminhava de cabeça erguida, sem querer esboçar nenhuma tentativa de enxugá-las:
'Para com isso, mãe!' disse Frony. 'Todo mundo olhando. Daqui a pouco a gente vai passar na frente dos branco.'
'Eu vi o primeiro e o derradeiro', disse Dilsey. 'Não preocupa comigo não.'
'Primeiro e derradeiro o quê?' perguntou Frony.
'Não preocupa não', disse Dilsey. 'Eu vi o princípio, e agora eu vejo o fim.'" (p. 327)
A história é cheia de dramas, de conflitos, de embates, de ódio; há situações chocantes - mais chocantes ainda quando se passam com pessoas de uma mesma família; os personagens são tanto autodestrutivos como destrutivos uns aos outros; e a consciência dessa estrutura familiar conturbada acompanha os personagens:
"Cheguei à rua, mas os dois haviam desaparecido. E lá estava eu, sem chapéu, como se eu também fosse maluco. E quem me visse podia muito bem pensar: um é maluco, o outro se matou afogado, a outra foi posta no olho da rua pelo marido, então todos eles devem ser malucos, mesmo. O tempo todo eu via as pessoas me olhando, como quem olha um gavião, aguardando uma oportunidade de dizer: Bom, não me surpreende, eu já esperava isso, a família toda é maluca. Vendem terra para que o outro possa estudar em Harvard, pagam imposto para sustentar uma universidade estadual que eu nunca vi, fora umas duas vezes em partidas de beisebol, e não deixam o nome da filha ser pronunciado na casa até que depois de um tempo o pai nem vinha mais ao centro, ficava o dia inteiro sentado ao lado da garrafa, eu só via as fraldas da camisola dele e as pernas nuas e ouvia o barulho da garrafa contra o copo até que no fim T.P. tinha que pôr a bebida no copo para ele e ela diz: Você não demonstra respeito pela memória do seu pai, e eu digo: Não vejo por que não ela está muito bem preservada e vai durar bastante [...]." (p. 256)
Eu confesso que tive dificuldade de entrar no texto, porque ele não é límpido, não é fluído, não é fácil, mas, indubitavelmente, ele é um esforço que compensa, e o prazer da leitura - em grande parte causado pela forma e pelo estilo utilizados por Faulkner - supera os obstáculos, que não são obstáculos negativos, mas intensificadores da grandiosidade do livro. Além de ser difícil encontrar um fio condutor narrativo, os acontecimentos não são explicitamente revelados, nem completamente explicados, nem mesmo concluídos, o que gera uma sensação de que o texto está inacabado, mas não em um sentido ruim, como sinônimo de incompleto, pelo contrário, o texto acaba por extrapolar sua própria arquitetura, tornando-se coisa viva. Ainda na questão de o livro deixar muito em aberto: Faulkner criou uma das personagens femininas mais intrigantes da literatura: Caddy. Caddy é personagem de suma importância na narrativa; ela é essencial para que os irmãos hajam da maneira que agem, para que eles sejam da maneira que são; ela é uma peça fundamental na história; no entanto, é a única filha que não narra - e, embora isso seja frustrante, contribui para a infinidade de possibilidades do texto, porque não havendo sua visão registrada, sua história particular se torna ainda mais instigante e ainda mais desejável. Da mesma maneira que Caddy é largada pelo marido e, posteriormente, excluída da própria família, também lhe é proibido contar sua própria versão dos fatos, e, assim, Caddy permanece para sempre afastada e calada.
"'É, você deve mesmo estar muito sensibilizada, vindo pra cá escondida assim que ele morreu. Mas você não vai ganhar nada com isso. Não fica pensando que você vai se aproveitar dessa situação pra voltar pra cá. Se você não consegue ficar no cavalo que você tem, o jeito é andar a pé', eu digo. 'Lá em casa a gente nem conhece o seu nome', eu digo. 'Sabia disso? A gente nem conhece o seu nome. Seria melhor pra você se você estivesse lá embaixo junto com ele e o Quentin', eu digo. 'Sabia disso?'" (p. 224)
Quando comecei a ler o livro, minha sensação imediata foi de que eu era uma intrusa em um ambiente familiar. E, sendo intrusa, eu não conseguia entender o que estava acontecendo, porque a cena já estava em andamento quando eu adentrei aquele ambiente. E eu me senti assim por muito tempo, chegando até a comentar a dificuldade pela qual eu estava passando com um amigo, que me respondeu: "O primeiro capítulo realmente é um desafio. É mais ou menos igual o amor, mas sem a possibilidade de se decepcionar.". Sábio amigo.
- - -
E eu acho importante registrar, também, que, apesar de toda a tragédia e apesar de toda a desgraça, há inúmeras imagens belíssimas no texto. Faulkner captura momentos belos no exato momento em que eles alcançam o máximo de sua beleza e os eterniza no registro da escrita. Enfim, "O som e a fúria" é um livro genial, por qualquer prisma que se o aborde.
- - -
No blog "Um túnel no fim da luz", Kelvin Falcão Klein escreveu três textos interessantes sobre os leitores de Faulkner.
1) Leitores de Faulkner
2) Leitores de Faulkner, 1
3) Leitores de Faulkner, 2
Nenhum comentário:
Postar um comentário