"Sartoris" (1929), de William Faulkner, publicado pouco antes de "O som e a fúria", já adiantava, temática e formalmente, o que viria a ser a considerada obra-prima do escritor. O romance focaliza uma família - os Sartoris - de passado escravocrata e que, já tendo gozado de glória e de respeito, vive, nos dias atuais, sua decadência - o que se repetiria em "O som e a fúria" com a família Compson. O Bayard Velho, filho do prestigiado coronel John Sartoris, e a tia Jenny, irmã mais nova do coronel (mas já com oitenta anos), vivem em uma casa cheia de ausências e de lembranças. Os outros dois Sartoris vivos são os netos gêmeos do Bayard Velho: o jovem Bayard e John. Gabriel García Márquez, leitor e admirador de Faulkner - a quem chama de mestre - teria citado três livros como grandes influências para a escrita de "Cem anos de solidão": a Bíblia, "As mil e uma noites" e "O tempo e o vento"; mas é evidente que, apreciando tanto o escritor norte-americano, sua obra tenha sido por ele influenciada; como veríamos depois em "Cem anos de solidão" - e de maneira muito mais intensificada -, os nomes, em "Sartoris", estão sempre se repetindo, gerando uma espécie de herança (aqui, não genética, mas de personalidade) aos novos membros da família, o que, é evidente, cria um movimento circular na narrativa, como se nascer um Sartoris já definisse o destino das personagens. Já no final do livro, Faulkner escreve:
"[...] O jasmineiro emitia ondas de aroma; os pardais agora estavam mudos, e a srta. Jenny falava no crepúsculo sobre o pequeno Johnny enquanto Narcissa tocava absorta e desatenta, como se não estivesse ouvindo. Então, sem parar de tocar e sem volver a cabeça, ela disse:"Não é John o nome dele. É Benbow Sartoris.""O quê?""O nome dele é Benbow Sartoris", repetiu ela.A srta. Jenny ficou imóvel por um instante. No aposento ao lado, Elnora movia-se de um lado para o outro, pondo a mesa para o jantar. "E você acha que isso vai fazer alguma diferença?, indagou a srta. Jenny. "Você acha que pode mudar algum deles com um nome?"[...]"Você acredita", repetiu a srta. Jenny, "que só por que recebeu o nome de Benbow ele não vai ser tanto um Sartoris e um estouvado e um tolo?" (p. 408, edição da Cosac Naify, tradução de Claudio Alves Marcondes)
O jovem Bayard e John vão para a Primeira Guerra Mundial, mas apenas o primeiro volta para casa, não apenas sem o irmão, mas com a imagem da morte dele constantemente se presentificando. Depois da experiência da guerra, e com a ausência do irmão, viver se torna insuportável para o jovem Bayard. Principalmente em um lugar - tanto sua casa, no condado de Yoknapatawpha, como na própria escrita de Faulkner - em que o tempo não passa, se arrasta lenta e sofregamente:
"Quando fechou a porta ao sair, Bayard tirou o paletó, os sapatos e a gravata, desligou a luz e estendeu-se na cama. O luar filtrava-se impalpável pelo quarto, refletido e difuso; nenhum som perturbava a noite. Além da janela erguia-se uma cornija em uma sucessão de degraus rasos, destacando-se de um céu opalino e sem dimensões. A cabeça dele estava desanuviada e calma; o uísque que havia bebido estava completamente neutralizado. Ou antes, era como se a cabeça dele fosse a de um Bayard que jazia em uma cama estranha e cujos nervos apaziguados pelo álcool se irradiavam como filamentos de gelo através daquele corpo que teria de arrastar para sempre em um mundo estéril e desolado. 'Maldição', exclamou, deitado de costas, olhando pela janela onde não havia nada para se ver, esperando pelo sono, sem saber se ele viria ou não, sem dar a mínima para qualquer uma dessas possibilidades. Nada para se ver, e a longa, longa trajetória de uma vida humana. Três vintênios e um decênio para arrastar um corpo obstinado pelo mundo e atender a suas insistentes demandas. Três vintenas e dez, dizia a Bíblia. Setenta anos. E ele tinha apenas vinte e seis. Pouco mais de um terço completado. Maldição." (p. 171-172)
E a narrativa de Faulkner faz o tempo se arrastar, com parágrafos inteiros com descrições das plantas no jardim da srta. Jenny, do perfume das plantas pela manhã, da luz do sol se infiltrando na sala do piano, do pó sobre os móveis... ler Faulkner é uma experiência separada do espaço e do tempo comuns. Para tentar fugir disso, o jovem Bayard passa o livro dirigindo carros em altíssima velocidade pelas estradas do condado, em busca de seu destino, assistido por todas as personagens, principalmente pela tia Jenny, que é quem vai sustentando a narrativa com sua memória que conjuga o passado e o presente dos Sartoris (em sua circularidade), e com seus comentários extremamente ácidos:
"A srta. Jenny agradeceu-lhe com mordacidade a solicitude e atreveu-se a dizer que Bayard estava bem: ainda um membro ativo da chamada raça humana, isto é, considerando-se que não haviam recebido nenhum relatório oficial do legista. Não, não recebera nenhuma outra notícia dele desde que Loosh Peabody ligou às quatro da tarde, dizendo que Bayard estava a caminho de casa com a cabeça quebrada. Quanto à cabeça quebrada ela não tinha a menor dúvida, mas à outra parte da mensagem ela não dera o menor crédito, tendo convivido com os malditos Sartoris por oitenta anos e sabendo muito bem que o último lugar no mundo em que um Sartoris com a cabeça quebrada pensaria em voltar seria para casa." (p. 163-164)
Se as personagens femininas em "O som e a fúria" são relapsas, ausentes, caladas e/ou excluídas, em "Sartoris" é uma personagem feminina, a srta. Jenny, a guardiã da história, dos Sartoris e de Faulkner - e com um senso de humor que garantiu que ela já se tornasse uma das minhas personagens preferidas de 2014. E ela reaparece em "Santuário" (1931), assim como Narcissa, esposa do jovem Bayard, e seu irmão Horace; mas, como "Santuário" se passa dez anos após o final de "Sartoris", a srta. Jenny já está com noventa anos, e sua acidez já se encontra mais abrandada, embora nem tanto. "Santuário", uma história com uma veia de mistério - que também se passa no condado de Yoknapatawpha -, se aproximaria mais do conto "A Rose for Emily", mas apresenta personagens tão perturbadas quanto qualquer personagem de "Sartoris" ou de "O som e a fúria". E "Santuário" nos mostra que em Yoknapatawpha tudo pode acontecer, assim como, por exemplo, em Macondo.
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