"A elegância do ouriço" (2006) - no original "L'élégance du hérisson" - é o segundo (e, até o momento, último) romance de Muriel Barbery, professora de filosofia e escritora francesa, nascida no Marrocos.
Há, no romance, duas personagens a princípio completamente opostas, mas que acabam sendo um reflexo uma da outra. A primeira é Renée Michel, uma mulher de 54 anos que trabalha como zeladora em um edifício luxuoso no centro de Paris, o nº 7 da Rue de Grenelle; a segunda, Paloma Josse, uma menina brilhante de 12 anos, filha de um ministro, que mora com os pais e com a irmã em um dos apartamentos desse edifício. Separadas por uma grande diferença de idade e pela classe social, as duas têm em comum, principalmente - entre tantas coisas, como a admiração pela cultura japonesa -, a busca e a contemplação da beleza, que Renée chamaria de "camélias sobre o musgo", e Paloma, de "movimento do mundo". Não à toa, são as duas que escrevem o livro: Renée como a narradora principal; e Paloma, através de dois diários: os "Pensamentos profundos" (diário do espírito) e o "Diário do movimento do mundo" (diário do corpo), escritos depois de a menina decidir que se suicidará ao completar 13 anos.
Aclamado como "o mais delicioso dos romances filosóficos", "A elegância do ouriço" é delicioso de ser lido, o que, evidentemente, não significa que a leitura seja tranquila ou tranquilizadora. O olhar extremamente aguçado e questionador de Renée sobre a vida, a partir da observação do cotidiano, me sensibilizou muito. As coisas não são normais só porque são comuns e aceitas. A própria Renée é o grande exemplo: Renée trabalha como concierge, mas não é uma concierge, é uma pessoa, que ama, por exemplo, a literatura russa, o cinema de Yasujiro Ozu, a música clássica, a pintura holandesa, que são, na verdade, seu prazer secreto, enquanto veste perfeitamente o comportamento da concierge rabugenta para conviver com as pessoas do edifício - a razão de Renée para manter essa espécie de identidade secreta saberemos nos capítulos finais.
"Meu nome e Renée. Tenho cinquenta e quatro anos. Há vinte e sete sou a concierge, a zeladora do número 7 da Rue de Grenelle, um belo palacete com pátio e jardim interno, dividido em oito apartamentos de alto luxo, todos habitados, todos gigantescos. Sou viúva, baixinha, feia, gordinha, tenho calos nos pés e, em certas manhãs incômodas, um hálito de mamute. Não estudei, sempre fui pobre, discreta e insignificante. Vivo sozinha com meu gato, um bichano gordo e preguiçoso, cuja única particularidade digna de nota é ficar com as patas fedendo quando é contrariado. Ele e eu não fazemos o menor esforço para nos integrar no círculo de nossos semelhantes. Como raramente sou simpática, embora sempre bem-educada, não gostam de mim, mas me toleram porque correspondo tão bem ao que a crença social associou ao paradigma da concierge, que sou uma das múltiplas engrenagens que fazem girar a grande ilusão universal de que a vida tem um sentido que pode ser facilmente decifrado. E, assim como está escrito em algum lugar que as concierges são velhas, feias e rabugentas, assim também está gravado em letras de fogo, no frontão do mesmo firmamento imbecil, que as ditas concierges têm gatos gordos e hesitantes que cochilam o dia inteiro em cima de almofadas cobertas de capas de crochê.
[...]
O aparecimento dos videocassetes e, mais tarde, do deus DVD mudou as coisas ainda mais radicalmente no sentido da minha felicidade. Como é pouco corrente que uma concierge vibre com Morte em Veneza e que de seu cubículo escape um Mahler, comi a poupança conjugal, tão arduamente amealhada, e comprei outro televisor, que instalei no meu esconderijo. Enquanto a televisão da saleta - garantia de minha clandestinidade - berrava sem que eu ouvisse as insanidades dos cérebros e ostras, eu me maravilhava, com lágrimas nos olhos, diante dos milagres da Arte." (p. 15-18, edição da Companhia das Letras, tradução de Rosa Freire d'Aguiar)
Na verdade, a meu ver, a busca pela beleza não é apenas empreendida por Renée e por Paloma, mas pelo próprio romance, porque uma manifestação artística. A importância dessa busca é, na verdade, vital para as personagens, pois encontrar e presenciar um momento belo é vislumbrar a eternidade, porque esse momento se liberta do tempo e existe em si mesmo; como define Paloma ao final:
"Refletindo sobre isso, esta noite, com o coração e o estômago em migalhas, pensei que, afinal, talvez seja isso a vida: muito desespero, mas também alguns momentos de beleza em que o tempo não é mais o mesmo. É como se as notas de música fizessem uma espécie de parênteses no tempo, de suspensão, um alhures aqui mesmo, um sempre no nunca.
Sim, é isso, um sempre no nunca." (p. 350)
E esse vislumbre da eternidade pode valer por uma vida inteira. É como nos versos de Drummond: "Gastei uma hora pensando um verso/que a pena não quer escrever./No entanto ele está cá dentro/inquieto, vivo./Ele está cá dentro/e não quer sair./Mas a poesia desse momento/inunda minha vida inteira."
Além de ser possível, embora não comum, presenciar esses momentos no cotidiano - "A camélia sobre o musgo do templo, o violeta dos montes de Kyoto, uma xícara de porcelana azul, essa eclosão de beleza pura no centro das paixões efêmeras, não é a isso que nós todos aspiramos? [...] A contemplação da eternidade do próprio movimento da vida." (p. 106-107); e Renée e Paloma conseguem presenciá-la até na gramática -, a arte seria o lugar por excelência da verdadeira beleza (afirma Renée: "Pois a Arte é a vida, mas num outro ritmo." (p. 163)):
"A cobiça humana! Somos incapazes de parar de desejar, e mesmo isso nos magnifica e nos mata. O desejo! Ele nos transporta e crucifica, levando-nos cada dia ao campo de batalha onde na véspera perdemos mas que, ao sol, nos parece novamente um terreno de conquistas, nos faz construir, quando na verdade amanhã morreremos, impérios fadados a se tornar pó, como se o conhecimento que temos dessa queda próxima não importasse à sede de edificá-los agora, nos insufla o recurso de querer também aquilo que não podemos possuir, e nos joga de manhãzinha na relva juncada de cadáveres, fornecendo-nos até a nossa morte projetos tão logo realizados e tão logo renascidos. Mas é tão extenuante desejar permanentemente... Breve aspiramos a um prazer sem busca, sonhamos com um estado bem-aventurado que não começaria nem acabaria e em que a beleza não seria mais um fim nem um projeto mas se tornaria a própria evidência de nossa natureza. Ora, esse estado é a Arte. Pois essa mesa, eu tive de arrumá-la? [indagações de Renée ao admirar uma pintura de natureza-morta] Essas iguarias, devo cobiçá-las para vê-las? Em algum lugar, alhures, alguém quis essa refeição, aspirou a essa transparência mineral e perseguiu o gozo de acariciar com a língua o sedoso salgado de uma ostra ao limão. Foi preciso esse projeto, encaixado dentro de cem outros, fazendo jorrar outros mil, essa intenção de preparar e saborear um ágape de mariscos - esse projeto do outro, na verdade, para que o quadro tomasse forma.
Mas, quando olhamos para uma natureza-morta, quando nos deliciamos, sem tê-la perseguido, com essa beleza que leva consigo a figuração magnificada e imóvel das coisas, gozamos daquilo que não tivemos de cobiçar, contemplamos o que não tivemos de querer, afagamos o que não tivemos de desejar. Então, a natureza-morta, por figurar uma beleza que fala ao nosso desejo mas nasce do desejo de outro, por convir ao nosso prazer sem entrar em nenhum de nossos planos, por se dar a nós sem o esforço com que a desejaríamos, encarna a quintessência da Arte, essa certeza no intemporal. Na cena muda, sem vida nem movimento, encarna-se um tempo isento de projetos, uma perfeição arrancada de uma duração e de sua exausta avidez - um prazer se desejo, uma existência sem duração, uma beleza sem vontade." (p. 218-219)
De modo que a arte pode realizar um desejo do homem - a contemplação do belo -, ao mesmo tempo em que o liberta de desejar. É claro que, enveredando-se por questões/discussões filosóficas, o texto ficcional pode acabar sendo lido, também, através de uma veia mais teórica - o que não torna a leitura menos prazerosa.
É ótimo acompanhar Renée, que, vivendo em um ambiente hostil e firmado sobre a supervalorização das aparências, encontra suas camélias também no amor e na amizade, principalmente em Paloma, em Manuela (sua melhor amiga; uma mulher portuguesa que trabalha como faxineira em alguns apartamentos do edifício) e em Kakuro, o sr. Ozu, um senhor que se muda para o prédio e que é extremamente gentil. O título do livro se refere, evidentemente, à própria Renée, e é explicado por Paloma:
"A sra. Michel tem a elegância do ouriço: por fora, é crivada de espinhos, uma verdadeira fortaleza, mas tenho a intuição de que dentro é tão simplesmente requintada quanto os ouriços, que são uns bichinhos falsamente indolentes, ferozmente solitários e terrivelmente elegantes." (p. 152)
Ainda em um de seus diários - o "Pensamento profundo nº 10" -, Paloma escreverá sobre a aula de francês: "Francês com a sra. Maigre se resume a uma longa série de exercícios técnicos, que se faça gramática ou leitura de textos. Com ela, parece que um texto foi escrito para que se possam identificar seus personagens, o narrador, os locais, as peripécias, o tempo do relato etc. Acho que nunca lhe veio à mente que um texto é antes de tudo escrito para ser lido e provocar emoções no leitor. Imaginem que ela nunca fez a pergunta: 'Gostaram desse texto/desse livro?'. No entanto, é a única pergunta que poderia dar sentido ao estudo dos pontos de vista narrativos ou da construção do relato..." (p. 165). Então, Paloma, respondendo a sua pergunta: sim, gostei desse livro - que me provocou bastante tristeza, aliás.
Gostei muito do livro.
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