"Acabadora" (no original: "Accabadora"), publicado em 2009, é de autoria de uma escritora italiana, nascida na Sardenha, chamada Michela Murgia. Por enquanto, esse é seu único romance publicado no Brasil, pelo selo Alfaguara, da Editora Objetiva, com tradução de Federico Carotti e Denise Bottmann. O romance, muito bem recebido na Itália, recebeu dois prêmios: o Campiello (prêmio já concedido, por exemplo, a Primo Levi e a Antonio Tabucchi) e o SuperMondello.
Romance contemporâneo, mas no qual, como consta na capa da edição brasileira, "'Murgia recupera a paisagem social e a tradição de sua Sardenha natal.'"
Na verdade, embora situado e ambientado em época e lugar específicos - a década de 1950 na Sardenha, com as tradições e os costumes de então -, o livro acaba por extrapolar os limites espaço-temporais ao focalizar as personagens menos pelos acontecimentos externos e mais por suas vivências emotivas em relação a esses acontecimentos.
Na verdade, embora situado e ambientado em época e lugar específicos - a década de 1950 na Sardenha, com as tradições e os costumes de então -, o livro acaba por extrapolar os limites espaço-temporais ao focalizar as personagens menos pelos acontecimentos externos e mais por suas vivências emotivas em relação a esses acontecimentos.
A acabadora do título é Bonaria Urrai, uma costureira já velha, viúva e sem filhos, que, quando é noite em Soreni, desempenha sua segunda função: acabar com o sofrimento de pessoas já à beira da morte. Bonaria adota Maria Listru (filha última e indesejada de outra viúva, Anna Teresa Listru, que, além de Maria, tinha três outras filhas) como filha d'alma: "É assim que se chamam as crianças geradas duas vezes, pela pobreza de uma mulher e pela esterilidade de outra. Maria Listru era filha deste segundo parto, fruto tardio da alma de Bonaria Urrai." (p. 7) Os filhos d'alma não são exatamente separados dos pais biológicos, pois podem conviver com eles, mas passam a ter uma segunda família.
A história é bastante curta (a edição brasileira tem 154 páginas no total), e as personagens não são desenvolvidas muito profundamente (há sempre a sensação de que há muito mais escondido do que exposto), mas suas emoções são tão sinceras, tão verdadeiras, tão humanas, que elas, apesar de não nitidamente delineadas, mas pinceladas com algumas sombras pela escritora, estão intensamente vivas; e, para que seja assim, Murgia escreve os diálogos certos, e todos eles essenciais, de maneira que não há desperdícios: quando preciso, as personagens gritam; quando preciso, falam; quando preciso, calam. E o silêncio, que é recorrente no livro, representa as ausências, que são muitas ("Quem nasce órfão logo aprende a conviver com as ausências", p. 94).
O desfecho do livro, na verdade, não é exatamente inesperado. Mas Michela Murgia é muito feliz na composição de sua trama e presenteia o leitor com imagens tão lindas, que não é difícil o surgimento de uma relação afetiva no momento da leitura. Embora nem tudo das personagens esteja entregue ao leitor, essas personagens são conhecidas intimamente por quem narra a história, e essa história é narrada com muita candura, com muita delicadeza e de maneira cativante - o mesmo tipo de tratamento que o narrador de "As virgens suicidas" dispensa às meninas Lisbon, por saber que elas carecem desse carinho.
A cena que mais me marcou foi a cena em uma loja, em que Bonaria vê Maria, ainda com seis anos, roubando cerejas de um cesto e as escondendo no bolso do vestido branco:
Achei tão bonito que, embora Bonaria tenha adotado Maria e se tornado sua segunda mãe, a mancha das cerejas no tecido do vestido de Maria, simbolizando o sangue, sugira que foi Maria quem deu à luz essa maternidade. E isso será retomado posteriormente, nas decisões que Maria precisará tomar.
A história é bastante curta (a edição brasileira tem 154 páginas no total), e as personagens não são desenvolvidas muito profundamente (há sempre a sensação de que há muito mais escondido do que exposto), mas suas emoções são tão sinceras, tão verdadeiras, tão humanas, que elas, apesar de não nitidamente delineadas, mas pinceladas com algumas sombras pela escritora, estão intensamente vivas; e, para que seja assim, Murgia escreve os diálogos certos, e todos eles essenciais, de maneira que não há desperdícios: quando preciso, as personagens gritam; quando preciso, falam; quando preciso, calam. E o silêncio, que é recorrente no livro, representa as ausências, que são muitas ("Quem nasce órfão logo aprende a conviver com as ausências", p. 94).
"- A senhora é filha de quem, tia? - perguntou um dia, com a boca cheia de sopa.
- Meu pai se chamava Taniei Urrai, era aquele senhor ali...
Bonaria indicou a velha foto polida, pendurada em cima da lareira, onde Daniele Urrai, empertigado em seu colete de veludo, aparentava talvez uns trinta anos e podia parecer qualquer coisa à menina, menos o pai da velha diante de si. Bonaria leu a incredulidade no rosto rosado.
- Ali ele era moço, eu ainda não tinha nascido - explicou ela.
- E mãe, a senhora não tinha? - insistiu Maria, a qual, evidentemente, não possuía uma grande intimidade com a ideia de que os filhos pudessem ter pai.
- Claro que tinha, chamava-se Anna. Mas ela também morreu muitos anos atrás.
- Como meu pai - acrescentou Maria, séria. - Às vezes eles fazem isso.
Bonaria ficou surpresa com aquele comentário.
- Fazem o quê?
- Isso. Morrem antes que a gente nasça - Maria respondeu paciente. Depois acrescentou de má vontade: - Foi a Rita que me disse, a filha de Angela Muntoni. O pai dela também morreu antes.
Durante a explicação, a colher se agitava no ar como o arco de um instrumentista.
- Sim, alguns fazem isso. Mas nem todos - disse Bonaria, observando-a com um sorriso vago.
- É, nem todos - concordou Maria. - Pelo menos um tem que ficar. Para as crianças. É por isso que sempre é um casal de pais.
Bonaria concordou, colocando a colher na sopa, crente de que tinham terminado a conversa.
- Vocês eram em dois?
Por fim Bonaria entendeu e, sem parar de comer, falou no tom quase casual que tinha usado até aquele momento.
- Sim, éramos em dois. Meu marido morreu também.
- Oh, morreu... - repetiu Maria depois de um instante, indecisa entre o alívio e o desgosto.
- Sim - disse Bonaria, séria por sua vez. - Às vezes fazem isso." (p. 11-12)
O desfecho do livro, na verdade, não é exatamente inesperado. Mas Michela Murgia é muito feliz na composição de sua trama e presenteia o leitor com imagens tão lindas, que não é difícil o surgimento de uma relação afetiva no momento da leitura. Embora nem tudo das personagens esteja entregue ao leitor, essas personagens são conhecidas intimamente por quem narra a história, e essa história é narrada com muita candura, com muita delicadeza e de maneira cativante - o mesmo tipo de tratamento que o narrador de "As virgens suicidas" dispensa às meninas Lisbon, por saber que elas carecem desse carinho.
A cena que mais me marcou foi a cena em uma loja, em que Bonaria vê Maria, ainda com seis anos, roubando cerejas de um cesto e as escondendo no bolso do vestido branco:
"- Não a viu chorar naquela manhã na loja, enquanto a mãe se mortificava em encontrar palavras que explicassem aquele seu comportamento selvagem, aquela ânsia dos sentidos que se convertia em furto com uma frequência muito maior do que a fome pudesse justificar.
- Melhor seria se nunca tivesse nascido, sabem os céus que três já me bastam na minha condição...
E tampouco aquele aborto retroativo despertou alguma reação visível no rosto de Maria. Ela ficou imóvel com a inconsciência indolor de quem nunca nasceu de verdade, enquanto no tecido branco do vestido começava a florir a cor das cerejas roubadas, correspondendo ao bolso direito. Um vermelho que se espraiava como uma chaga, e em alguns pontos era quase negro. Aquela mancha parecia a única coisa a se mover nela, uma obscena menstruação de fruta. A dona da loja foi a primeira a notar.
- Você pegou cerejas do cesto?
Anna Teresa Listru se deu conta do furo na roupa da filha enquanto a bofetada já chegava ao seu destino. A menina fechou os olhos apenas durante o instante do golpe, depois reabriu e o olhar ficou parado, uma mão ferozmente enterrada no bolso exasperando a mancha externa. As lágrimas estavam ali, mas não desceram.
- Giulia, me desculpe, não sei o que dizer, ponha na minha conta...
- Imagine, acontece, são crianças - minimizou a comerciante atrás do balcão. - Mas certamente aquela mão malandrinha... - acrescentou malévola num meio sorriso.
Mais que tudo, foi principalmente aquele vermelho no bolsinho bordado que fez Bonaria Urrai pensar que talvez o tempo da esterilidade tivesse chegado ao fim, e não se passou uma semana para ir conversar com Anna Teresa Listru sobre a possibilidade de adotar Maria como filha d'alma." (p. 136-137)
Achei tão bonito que, embora Bonaria tenha adotado Maria e se tornado sua segunda mãe, a mancha das cerejas no tecido do vestido de Maria, simbolizando o sangue, sugira que foi Maria quem deu à luz essa maternidade. E isso será retomado posteriormente, nas decisões que Maria precisará tomar.
"- Maria, você é filha de quem?
A mocinha não esperava por essa. Calou-se por um momento tentando ver qual era a armadilha da pergunta, e optou pelo seguro.
- De Anna Teresa e Sisinnio Listru...
- Certo. Mas onde você vive?
Desta vez Maria percebeu a armadilha e tentou ganhar tempo.
- Vivo em Soreni.
- Maria - advertiu Bonaria arqueando as sobrancelhas. A menina teve de ceder.
- ... Vivo aqui com a senhora, tia.
- Portanto, você vive separada de sua mãe, mas continua a ser filha dela. Não é assim? Não vivem juntas, mas são mãe e filha.
Maria ficou quieta, um pouco humilhada, abaixando os olhos para os joelhos, querendo se consolar com o abecedário onde cada coisa tinha um lugar, e um lugar só. O sussurro saiu leve como um sopro.
- Somos mãe e filha, sim... mas não como uma família. Se fôssemos uma família, ela não teria feito um acordo com a senhora... isto é, eu acredito que a senhora é minha família. Porque nós duas somos mais próximas." (p. 25-26)
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