sexta-feira, 25 de agosto de 2017

"O coração das trevas", Joseph Conrad

Quando Conrad escreveu "O coração das trevas" ("Heart of Darkness"), as histórias de aventura eram muito estimadas pelo público leitor. Aproveitando de suas próprias experiências na Marinha, o escritor compôs essa história mais ou menos aos moldes dessa tipo de narrativa, mas apostando em um texto muito mais crítico, e, portanto, bem mais pesado. Talvez por isso seu livro não tenha feito tanto sucesso como outros do gênero, na época, mas permaneceu como um clássico da língua inglesa - embora o autor, nascido em Berdychiv, só tenha aprendido inglês quando jovem.
Em um texto composto por narrativa moldura e narrativa emoldurada, "O coração das trevas" conta a história de um grupo de marinheiros a bordo da escuna Nellie, que ouve a história de um deles, Marlow.
Marlow conta um episódio de sua vida, de quando, trabalhando para a Companhia, vai para o Congo, como capitão de navio, como parte integrante da missão civilizatória dessa região. O interessante do livro, ao tratar do tema do imperialismo, é o fato de ele apresentar dois pontos de vista: o do ideal da civilização e o da realidade, com a qual Marlow entra em contato ao chegar no Congo - uma das principais críticas ao livro é o fato de o povo civilizado e explorado não ter voz, sendo retratado apenas como um povo selvagem e sem cultura, exatamente o oposto do homem europeu.
O primeiro ponto de vista (do ideal da civilização), aparece no livro na voz do narrador da primeira história, quando diz:

"[...] A força da maré corre de um lado para outro, em sua faina incessante, coalhada de recordações de homens e navios que conduziu para o repouso do lar ou para os embates do mar. Conheceu e serviu a todos aqueles dos quais a nação se orgulha, de sir Francis Drake a John Franklin, todos fidalgos, com títulos ou sem títulos - os grandes cavaleiros andantes do mar. Conduziu todos aqueles navios cujos nomes brilham como joias na noite dos tempos, desde o Golden Hind, retornando com seu bojo redondo abarrotado de tesouros, para ser visitado por Sua Alteza a Rainha e assim sair gigante da história, até o Erebus e o Terror, empenhados em outras conquistas - e que jamais voltaram. Eles partiram de Deptford, de Greenwich, de Erith - os aventureiros e os colonos; navios de reis e navios de homens de negócios, capitães, almirantes, os terríveis violadores de monopólios no comércio do Oriente, os 'generais' comissionados das frotas das Índias Orientais. À caça do ouro ou em busca da fama, todos haviam partido daquele rio, levando a espada e muitas vezes a tocha, mensageiros do poder da terra, portadores de uma centelha do fogo sagrado. Que grandeza não havia partido na vazante daquele rio rumo aos mistérios de uma terra desconhecida!... Sonhos humanos, sementes de comunidades econômicas, germes de impérios." (p.  14-15, tradução de Marcos Santarrita, edição da Nova Fronteira)

Em um livro cuja dualidade luz X trevas já se insinua desde o título, podemos encontrá-la, pela primeira vez, na representação dos povos civilizatórios como a luz ("centelha do fogo sagrado", veiculando, inclusive, uma imagem de divindade; o próprio Marlow afirma em determinado momento: "[...] ficou bastante claro para mim que eu fora descrito à esposa do alto dignitário [...] como uma criatura excepcional e talentosa [...]. Algo assim como um emissário da Luz [...]." (p. 26)) e dos povos a serem civilizados como as trevas (quando Marlow parte para sua missão no Congo, e adentra cada vez mais pela selva, vai em direção ao coração das trevas). O desenrolar da história de Marlow vai, por sua vez, esclarecer essa ideia, ao lançar nova luz sobre a verdade por trás do conceito de civilização, e colocar abaixo essa primeira ideia veiculada.
O segundo ponto de vista surge exatamente na voz de Marlow - ou do Marlow que foi e viu a realidade:

"A conquista da terra, que em sua maior parte significa tomá-la daqueles que têm uma cor ligeiramente diferente ou narizes ligeiramente mais chatos que os nossos, não é uma coisa bonita quando a gente a olha bem de perto." (p. 18) 

Além de testemunhar a violência e a barbárie praticadas contra os negros, Marlow conta sobre a burocracia, a inutilidade, a falta de propósito e o absurdo de todo o processo:

"[...] Nós seguíamos pesadamente, parávamos, desembarcávamos soldados; prosseguíamos, desembarcávamos funcionários da alfândega para cobrar impostos no que parecia um deserto abandonado por Deus, com um barraco de lata e um pau de bandeira ali perdidos; desembarcávamos mais soldados - suponho que para tomar conta dos funcionários da alfândega. Eu soube que alguns se afogavam nas ondas; mas se se afogavam ou não, ninguém parecia ter qualquer interesse particular nisso. Eram simplesmente jogados ali, e nós seguíamos em frente." (p. 27-28)

"Deparei-me com uma caldeira coberta pelo mato, e depois descobri uma trilha que subia o morro. Contornava as rochas, e também um pequeno vagão ferroviário emborcado, com as rodas para cima. Uma delas caíra. A coisa parecia tão morta quanto a carcaça de um animal. Dei com outras peças de maquinário em decomposição, uma pilha de trilhos enferrujados. À esquerda, um grupo de árvores criava uma zona de sombra, onde umas coisas escuras pareciam mover-se debilmente. Pisquei os olhos, a trilha era íngreme. Um apito soou à direita e vi os negros correrem. Uma detonação pesada e abafada abalou o chão, uma bola de fumaça saiu do penhasco, e foi só. Nenhuma mudança se operou na face do rochedo. Estavam construindo uma estrada de ferro. O penhasco não estava no caminho de  nada; mas aquela explosão sem objetivo era todo o trabalho que se fazia. (p. 30-31)

"Uma vez, um branco de uniforme desbotado, acampado na trilha com uma escolta armada de magros zanzibares, muito hospitaleiro e festivo - para não dizer bêbedo -, declarou que cuidava da manutenção da estrada. Não posso dizer que vi alguma estrada ou alguma manutenção, a menos que o cadáver de um negro de meia-idade, com um buraco de bala na testa, no qual eu literalmente tropecei uns cinco quilômetros adiante, possa ser considerado uma melhoria permanente." (p. 38) 

O primeiro capítulo do livro (composto por três), então, focaliza essa questão de como a civilização é apresentada por aqueles com o propósito de civilizar e o que de fato acontece nos lugares a que esse povo chega, e, principalmente, o que acontece com os povos por ele civilizados.
Em determinado momento, além da dicotomia colonizadores X colonizados, começa a aparecer também, no texto, a tensão estabelecida entre o homem e a natureza. Na verdade, parece a Marlow que, frente à grandeza silenciosa da natureza, os homens transformam-se em "homenzinhos de insignificante existência"; diante dessa percepção, quão mais terrível se torna o fato de alguns homens se considerarem superiores e no direito de subjugar outros homens - ou outras culturas inteiras? Grande questão.
É ainda no primeiro capítulo que Marlow ouvirá sobre Kurtz pela primeira vez. Esse nome, constantemente citado (às vezes, aos sussurros), começa a despertar em Marlow uma grande curiosidade. Kurtz é o empregado mais bem sucedido da Companhia e o que vive no posto mais afastado e de difícil acesso. Na mente de Marlow, começa-se a formar a seguinte indagação: "Tinha bastante tempo para meditação, e de vez em quando pensava um pouco em Kurtz. Não estava muito interessado nele. Contudo, estava curioso para ver se aquele homem, que viera equipado com ideias morais de alguma espécie, chegaria ao topo afinal, e como se poria a trabalhar uma vez lá chegado." (p. 54) Kurtz, pouco a pouco, se transformará, aos olhos de Marlow, na resposta a ser alcançada. Tanto é assim que Marlow passa a pensar em Kurtz como uma voz:

"No momento, essa era a ideia dominante. Minha sensação era de extrema decepção, como se descobrisse que estivera lutando por uma coisa inteiramente sem substância. Não me sentiria mais desgostoso se houvesse viajado toda aquela distância com o único objetivo de conversar com o sr. Kurtz. Conversar com... Joguei um sapato por sobre a amurada, e tomei consciência do que era, exatamente, que procurava - uma conversa com o sr. Kurtz. Fiz a estranha constatação de que nunca o imaginara fazendo alguma coisa, vocês sabem, mas apenas falando. Eu não disse a mim mesmo: 'Agora, jamais vou vê-lo', ou 'Agora jamais apertarei a mão dele', mas 'Agora jamais vou ouvi-lo'. O homem apresentava-se como uma voz. Não, é claro, que eu não o relacionasse com algum tipo de ação. Não me haviam dito, em todos os tons de ciúme e admiração, que ele coletara, trocara, ganhara na trapaça ou roubara mais marfim que todos os outros agentes juntos? Não era isso que importava. O que importava era que se tratava de uma criatura talentosa, e que, de todos os seus talentos, aquele que se sobressaía com destaque, que trazia consigo um senso de presença real, era sua capacidade de falar, suas palavras - o dom da expressão, o espantoso, o iluminador, o mais exaltado e o mais desprezível, a pulsante corrente de luz, ou o enganoso fluir do coração de uma impenetrável escuridão." (p. 78-79)

Em determinado momento, então, Marlow é designado a buscar Kurtz em seu posto, pois, segundo informações, ele se encontra muito doente (teria enlouquecido). Durante a viagem que empreende, Marlow diz que "Subir aquele rio era como viajar de volta aos mais primordiais princípios do mundo, quando a vegetação invadia a terra e as grandes árvores reinavam." (p. 58) Começa, nesse ponto, a se delinear um novo tema no livro: adentrar o coração da selva, ou o coração das trevas, leva Marlow a um questionamento sobre a própria condição do ser humano, até chegar à conclusão de que "Coisa esquisita é a vida - esse misterioso arranjo de lógica cruel para um objetivo fútil. O máximo que se pode esperar dela é algum conhecimento de si mesmo - que chega tarde demais -, uma colheita de inextinguíveis arrependimentos." (p. 114)
A narrativa não é totalmente esclarecedora; não coloca os pingos nos is, digamos; mas esse se constitui justamente em um dos aspectos mais interessantes do livro, pois sugere não existir nem justificativa nem solução para a questão levantada no texto. O texto parece incompleto, sugerindo, também, que a experiência de Marlow não foi totalmente completa - ele não encontrou respostas definitivas... há algo que parece fugir da compreensão, por mais que se tente aproximar dele - e o alcance pleno dessa compreensão pode significar a loucura. O próprio texto nos alerta sobre isso em "Mas Marlow não era típico (a não ser em sua queda para contar histórias), e para ele o sentido de um episódio não estava dentro, como uma amêndoa, mas fora, envolvendo a narrativa, que o fazia surgir apenas como um fulgor faz surgir o nevoeiro, como uma dessas diáfanas auras que às vezes se fazem visíveis pela iluminação espectral do luar." (p. 16)
Adentrar o coração das trevas parece se configurar como ir ao encontro da verdade.

Embora não seja dada voz ao povo explorado, é verdade que a narrativa de Marlow nos faz ver mais humanidade nos explorados do que nos exploradores, que, por sua vez, conforme marca o relato de Marlow, já tiveram que, um dia, ser iluminados pelos romanos: "- E também este - disse Marlow de repente - foi um dos pontos de trevas da terra." (p. 15)

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