sexta-feira, 1 de setembro de 2017

"O filho de mil homens", Valter Hugo Mãe

Sobre "O filho de mil homens", antes de mais nada, eu recomendaria o vídeo abaixo, em que o próprio escritor fala sobre o livro:

https://www.youtube.com/watch?v=1aIYO5CtF5k

Eu me comovo quando escritores falam sobre seus livros e sobre suas personagens de forma tão afetuosa. E quando os vejo falando sobre o processo de criação de personagens, sempre me lembro do Bécquer, afirmando que "Por los tenebrosos rincones de mi cerebro, acurrucados y desnudos, duermen los extravagantes hijos de mi fantasía esperando en silencio que el Arte los vista de la palabra para poder presentarse decentes en la escena del mundo." E de um dos esconderijos do cérebro de Valter Hugo Mãe surgiu uma personagem muito especial: Crisóstomo. Como o escritor comenta no vídeo, Crisóstomo é a origem da história, portanto, nada mais justo que seja, também, o início do livro:

"Um homem chegou aos quarenta anos e assumiu a tristeza de não ter um filho. Chamava-se Crisóstomo." (p. 11, edição da Cosac Naify)

A frase inicial do livro é carregada de significado. É verdade que a história é também sobre família - mais especificamente sobre formar uma família ("Farto como estava de ser sozinho, aprendera que a família também se inventava." (p. 169)), mas o primeiro laço, o laço fundamental, que permite todos os outros, nesse caso, é o da paternidade. O encontro de Crisóstomo (com quarenta anos) e de Camilo (com catorze), ou seja, o encontro de pai e filho adotivos, é o elo principal da corrente que será formada... afinal, o que Crisóstomo mais queria dizer era "meu filho"; o que ele mais queria era um filho. Ao nascer, finalmente, a paternidade, todas as demais coisas parecem possíveis.

Valter Hugo Mãe é desses escritores que nos deixam felizes e tristes ao mesmo tempo. Tristes pelo que escrevem. Felizes por como escrevem (e por escreverem).

O primeiro capítulo é um conto. E os próximos continuam episódicos e relativamente independentes, até o momento em que as vidas começam a se cruzar. Todas as personagens principais se parecem: são solitárias, incompletas, incompreendidas, marginalizadas, "diferentes das pessoas" (p. 53). Enquanto a personagem Brod, de "Tudo se ilumina" (Jonathan Safran Foer), descobriu "613 tristezas, todas perfeitamente únicas, todas emoções singulares, tão diferentes umas das outras quanto da raiva, do êxtase, da culpa ou da frustração", as personagens de "O filho de mil homens" sofrem de uma tristeza em comum: a falta de amor, pois, sim, são todas personagens que precisam amar e ser amadas, ainda que cada uma de uma maneira particular. E, nesse caso, amor e felicidade apresentam-se como sinônimos. Contra o senso comum, presente no livro nas atitudes e, principalmente, nas acusações dos vizinhos, "Cada um padecia de uma especificidade que carecia de ser pensada de modo distinto." (p. 115), tanto é que, ao longo da narrativa, surgem várias definições, às vezes conflitantes, sobre o que é o amor - depende da personagem, depende da circunstância, depende da necessidade. E aos poucos, tal qual numa ciranda, essas personagens vão se ligando umas às outras; e, então, deixam de ser metades para serem dobradas (para serem em dobro).
Embora pensemos, de início, em Camilo como o filho de mil homens, todas essas personagens vão se tornando pais e mães e filhos e filhas e irmãos e irmãs, pois

"todos nascemos filhos de mil pais e de mais mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. Como se os nossos mil pais e mais as nossas mil mães coincidissem em parte, como se fôssemos por aí irmãos, irmãos uns dos outros. Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa, que nunca estaremos sós." (p. 188)

"O filho de mil homens" é, também, sobre aprendizagem.
O livro vai reunindo essas peças meio quebradas para formar uma família bastante improvável, na qual os afetos falam mais alto do que o sangue. E, embora possamos reconhecer um certo retrato do mundo e da sociedade modernos, a história tem seu quê de conto de fadas, como afirma o próprio escritor - inclusive no fato de ter sua boa dose de sofrimento e de crueldade. Não apenas Crisóstomo aparece como esse pescador-príncipe-encantado, mas a história vai se desenrolando de maneira que as pessoas certas encontrem umas às outras. Cada uma é munida das ferramentas necessárias para curar feridas carregadas pelas outras.

Afirmadas e reafirmadas na história são as dicotomias estar sozinho X não estar sozinho, ter amor X não ter amor, ser feliz X não ser feliz, sentir-se completo X não se sentir completo. Nesse lugar criado pela história, em que o principal objetivo é encontrar o amor, é encontrar quem lhe saiba amar, a solidão torna-se insuportável:

"Ela perguntou: o boneco tem nome. Ele respondeu: não. Ela disse: que sorte, assim não precisa de ser ninguém. Quem não é ninguém não lhe falta nada. Nem lhe falta o amor, nem espera por nada. O Crisóstomo riu-se e confessou que era uma espécie de filho feliz. O boneco era um filho feliz. Os felizes, disse a Isaura, gostava tanto de saber mais coisas sobre eles." (p. 79)

E tal qual uma fada madrinha, atendendo aos desejos de suas personagens, Valter Hugo Mãe reserva a elas uma espécie de final feliz:

"Entre o reboliço em que ficou a mobília, distribuíram-se os convidados um pouco à vontade mas com cerimónias simples e tantas atenções. Estavam uns mais altos e outros mais baixos, porque os bancos tinham pernas longas e as cadeiras tinham pernas bem mais curtas. Com o mais alto e o mais baixo de cada um, a mesa tão improvisada tinha o popular dos arraiais. Parecia um carrossel de gente em torno das cores alegres dos pratos e das comidas. Faltava que girasse. Tinha de ser uma festa, talvez fosse mesmo uma festa, porque sobre as dores de cada um se celebravam de algum modo as partilhas, a disponibilidade cada vez mais consciente da amizade. Estavam à mesa carregados de passado, mas alguém fora capaz de tornar o presente num momento intenso que nenhum dos convidados quereria perder. Naquele instante, nenhum dos convidados quereria ser outra pessoa. O Crisóstomo pensava nisso, em como acontece a qualquer um, num certo instante, não querer trocar de lugar com rei ou rainha nenhuns de reino nenhum do planeta." (p. 169)

É interessante pensar na questão de gênero nesse caso. Como o próprio Valter Hugo Mãe comenta no vídeo, a ideia inicial era a de escrever uma crônica sobre o desejo de ter um filho. De repente, dessa ideia surgiu um conto, com um personagem chamado Crisóstomo, que acabou se tornando o primeiro capítulo do livro. E, às vezes, durante a leitura, embora com a consciência de ler um romance, eu tinha essa impressão de estar lendo um ensaio. De maneira que me parece que o texto de Mãe é uma grande ideia que adentrou no universo literário (e no mundo) revestida pela escrita primorosa de seu escritor, mas que extrapola os limites de sua própria forma. E dessa ideia surge o grande aprendizado, talvez, da narrativa:

"Confiava por instinto que confiar era já a resposta. Era muito especial que pudesse enternecer-se consigo mesmo. Com o que fora tão recentemente, como se, pelo outro lado das coisas, também lamentasse deixar-se de mão e mudar. Mas não era uma tristeza, era exatamente uma saudade de ter sofrido o que sofrera, o necessário para lhe ensinar a usufruir mais tarde, agora, a felicidade. Achava ele que se devia nutrir um carinho por um sofrimento sobre o qual se soube construir a felicidade.
Deve nutrir-se carinho por um sofrimento sobre o qual se soube construir a felicidade, repetiu muito seguro. Apenas isso. Nunca cultivar a dor, mas lembrá-la com respeito, por ter sido indutora de uma melhoria, por melhorar quem se é. Se assim for, não é necessário voltar atrás. A aprendizagem estará feita e o caminho livre para que a dor não se repita. Estava a crescer. O pescador crescia para ser um homem tremendo." (p. 172)

Nenhum comentário:

Postar um comentário